27.1.17

Como ganhamos e perdemos as virtudes

Qualquer um que tenha tentado desenvolver a paciência, praticar o perdão ou ser mais generoso, sabe que o desenvolvimento de uma virtude necessita de tempo. Um ato não faz a virtude, nem mesmo dois, três e nem quatro. A repetição dos atos é imprescindível. Porém é necessária uma grande sequência de ações similares para que a qualidade do ato virtuoso se converta em uma característica da forma de ser de uma pessoa (I-II,51, 2). Em princípio, todos somos torpes e ineptos no nosso empenho de fazer o bem, porque ainda não estamos suficientemente familiarizados com a virtude como para que esta se vai convertendo em nossa segunda natureza. Isto é o que faz a virtude em nós, nos dotam de uma «segunda natureza» no sentido de que trabalham e desenvolvem a primeira, isto é, o temperamento ou a personalidade com que temos nascido. Tomam em si o que temos herdado e recebido e adicionam sobre ele qualidades virtuosas; amassam nossa personalidade, adaptando-o e configurando segundo uma bondade determinada. Assim, como uma obra de arte, necessita-se de tempo para moldar-nos como pessoa de bom caráter. As virtudes são provas de como é difícil chegar a ser bom, porque não é um processo instantâneo, mas que se consegue por meio de muita prática, com uma trabalhosa repetição de atos capazes de realizar a transformação que vai da possibilidade de ser bom a ser realmente bom. Segundo Santo Tomás, todos temos uma inclinação para o bem, temos a capacidade inicial para a virtude, a possuímos de forma iniciada, mas devemos desenvolvê-la até que se faça em nós um hábito. Desenvolver uma virtude supõe tomar uma inclinação e fortalecê-la até que se converta em hábito. A pessoa virtuosa desenvolveu seu potencial para o bem, partindo de sua capacidade para o bom comportamento e reeducando-a até fazer dela uma aptidão estável e previsível. Todos podemos fazer o bem de vez em quando, mas se o fazemos ocasional ou casualmente e não de forma habitual, ainda não somos pessoas de virtude. É próprio da pessoa virtuosa fazer o bem, é o que se espera dela, pois tem praticado por tanto tempo que ela se tornou semelhante a própria bondade. Portanto, isso não é acidental, mas a marca de quem ele é. É por isso que Tomás diz que a virtude converte em boa tanto a ação como a pessoa que executa. 

A princípio, ser bom nos é estranho, uma vez que ainda não somos. A princípio apenas balbuciamos o bem; necessitamos das virtudes para chegar a sermos eloquentes na bondade, e é imprescindível o tempo. Consideremos o quão difícil é fazer da compaixão nossa segunda natureza. Tornar-se bom é uma questão de praticar o bem durante muito tempo, ao menos o tempo suficiente para que a qualidade do ato bom já seja a compaixão, a paciência, a justiça ou o perdão, se transforme em uma qualidade pessoal do nosso ser. Para que isto ocorra, explica Tomás, «é necessário que o elemento ativo vença totalmente o elemento passivo» (ST, I-II, 51, 3). O «elemento passivo» representa o potencial; a capacidade para com a virtude. O «elemento ativo» é a qualidade de uma certa virtude que deve «atuar em» nós, que deve gravar seu bem específico em nossa pessoa para que, então, encarnemos a virtude. Quanto isto ocorre atuamos com justiça, com temperança ou com generosidade, porque as qualidades destes atos já são características de nós mesmos.

Ademais, quando Tomás afirma que não possuímos uma virtude até que a qualidade do ato virtuoso «nos vença totalmente», nos recorda que uma virtude é algo estável e firme. Não somos virtuosos se a qualidade do bem é inconstante; somente chegamos a sê-lo quando nossa bondade é previsível. Um único ato justo inicia a formação da justiça na pessoa, mas não é suficiente para imbuirmos da qualidade da justiça. Tomás, às vezes, usa a imagem do gotejamento da água em uma rocha. Assim como a água leva anos para deixar a sua impressão sobre a pedra, um ato virtuoso pode levar anos para imprimir a sua própria qualidade em nós. Se adquire uma virtude pouco a pouco, a qualidade do ato bom se imprime paulatinamente, transformando a pessoa desde suas potências para o bem até sua identificação com esse mesmo bem. A pessoa virtuosa quando tem o hábito de fazer boas ações, é plenamente virtuosa quando executa atos de justiça, misericórdia, compaixão ou perdão porque se ajusta ao que ela é e se expressa atuando deste modo; assim, a pessoa virtuosa não faz o bem por estar constrangida a isto, mas porque desfruta de ser ela mesma. Nas palavras do Aquinate, possuímos uma virtude quando tendemos a sua bondade «de modo natural».

Por Paul J. Wadell 
Tradução Rafael de Abreu Ferreira 

12.1.17

Sabe mais quem sofre

Será que existe algum tipo de atração pelo sofrimento? Por que não exitem livros de histórias de alegria completa, realização do começo ao fim, encontros amorosos felizes, descritos ao longo de todos os gozosos capítulos? Por que é o revés, a dificuldade, a dor, a infidelidade, o motivo dos argumentos mais interessantes, das narrativas mais famosas? Então será a vida mesmo a "arte do encontro, embora haja tanto desencontro"?

Sofrimento parece render boas histórias, muitas horas de terapia, longas conversas entre amigos, letras de música, estrofes de poesia. O mesmo não acontece - pelo menos na mesma proporção - com a alegria, a felicidade, o sucesso. Mesmo quando algo termina bem na ficção (seja um filme, um livro, etc), geralmente é resultado de uma trajetória de dificuldades, buscas, erros e sacrifícios. As mais belas histórias de amor - Romeu e Julieta, Os noivos, Amor de Perdição, etc - têm seus finais felizes após algum sofrimento. Se assim não o fosse, não as leríamos, nem escutaríamos com tanto interesse - tente imaginar a famosa história de Shakespeare começando bem, com os dois protagonistas podendo realizar seus sonhos e não encontrando nenhum impedimento externo. No mínimo sem graça, diríamos.

Quem são as pessoas mais fascinantes? As que passaram pela vida como um bon vivant, desfrutando da existência como quem tem manjar turco para sobremesa de segunda a domingo? Seriam estas, que não têm outra coisa a nos dizer senão coisas boas sobre a própria vida? Tenho a impressão que não - e corro o risco de dizer que esse tipo de pessoa priva-se, ou é privada, de um aspecto fundamental da vida humana.

Nossa atenção ao que sofre, nossa atração pelas histórias difíceis, nossa preferência pelos testemunhos heróicos (frutos de uma jornada de vitórias sobre grandes obstáculos) parece ser um tipo de correspondência. É como se reconhecêssemos nisso a nossa condição: viver é uma arte difícil, permeada de desencontros e sofrimentos de toda ordem, e as grandes narrativas funcionam como modelos de realização deste que parece ser nosso script comum. Não é a mesma coisa que dizer que nascemos para sofrer; mas nascemos, sim, com a possibilidade de sofrer e no sofrimento encontramos as leis que regem nossa existência.

Estar no mundo é admitir sua contingência - do mundo e da nossa vida individual. Portanto, as biografias mais admiráveis podem ser aquelas que absorvem essa circunstância  limitadora e, de alguma forma, a transcendem. Na hierarquia dos tipos de personagens literários, Northrop Frye destaca os míticos como os mais perfeitos. Se pensarmos em Hércules ou Perseu, por exemplo, perceberemos que sua grandeza advém da proporcionalidade de seus feitos, que são conquistas e realizações sobre as dificuldades e trabalhos que lhe foram impostos. Os personagens mais baixos, seguindo a teoria do crítico canadense, são aqueles chamados irônicos: abaixo de si mesmos, das circunstâncias e dos deveres pessoais. Se sofrem, é inconscientemente, pois são incapazes de projetar e pôr em movimento uma biografia de valor, que recuse a paralisia existencial, admita as dificuldades e opere com os fracassos e a incompletude. É a diferença entre Raskolnikov (de Crime e Castigo) e Leniza (de A Estrela Sobe). A busca do sucesso pela segunda - que deseja ardentemente ser uma estrela do rádio - é uma fina ironia do seu criador: não é isto a vida humana e a coisa que mais se lhe opõe é justamente essa imagem de palco e aplauso.

Nossa condição é dramática e o sofrimento é uma via de acesso às verdades que podemos reconhecer e testemunhar nesta vida. As delícias, os prazeres, o gozo, quando nos acontecem são uma espécie de alento ou consolo: servem para nos fortalecer naquilo que realmente nos torna humanos, dá-nos substância, Por isso, e neste sentido, é mais humano quem mais sofreu. A recusa do sofrimento (e não estou dizendo que devemos desejá-lo com toda força) é uma negação da própria condição, fruto de uma inversão de perspectiva, desde que Marx julgou o paraíso apenas terreal, Nietzsche quis ser um devoto apenas de Dionísio e eu e você confundimos existência com férias.

Digo a vocês: sabe mais de si quem mais sofreu, pois sofrer permite-nos acessar o fundamento da vida, um núcleo composto mais de tensão do que de usufruto. É o que nos faz literalmente tencionar nossas vidas para o que importa, vencendo a inércia característica da leniência domingueira. Talvez por isto Deus tenha nos oferecido modelos de sacrifício que, pelo que acreditamos, mereceram os maiores júbilos no céu - a começar pelo próprio Cristo. As marcas no rosto, as cicatrizes pelo corpo, os dramas vividos, os fracassos, em suma, a escuridão solitária pela qual todos passamos, é o que nos distingue, nos torna mais interessantes, nos forja humanos. Doenças, falta de dinheiro, dificuldades em casa, desemprego, etc: tudo é graça se admitida a perspectiva a que me refiro. Tudo é capítulo da aventura humana que perde para poder ganhar.

10.1.17

Educação clássica e homeschooling

Rafael Falcón fala da educação clássica como sendo a educação ideal e que a escola moderna não pode oferecer uma educação clássica.

 renata massa