20.7.17

Adultos infantis e crianças velhas

Um fenômeno interessante tem se arvorado: os filmes e desenhos animados classificados como infantis estão seduzindo mesmo os adultos, que vêm lotando salas de cinema e consumindo em outras circunstâncias os produtos dirigidos supostamente às crianças. Também é de se notar a crescente qualidade técnica que estes mesmos produtos demonstram, oferecendo ao espectador - seja ele de que idade for - universos de cores e encantamentos bastante impressionantes.

A questão suscitada a partir desta observação sociológica, por assim dizer, tem dois aspectos. O primeiro, refere-se à óbvia infantilização dos homens e mulheres, cada vez mais sedentos de "ilusão" divertida que os desinstale da vida, geralmente pequena quanto aos critérios da emoção - a ponto de derramarem lágrimas quando Nemo encontra seu pai, ou rir como se não houvesse amanhã quando Shrek faz alguma sandice. A situação é mesmo patética, e a recusa de percebê-la é sintomática da falta de decoro - emocional, sentimental, perspectivo, argumental e biográfico - que se apresenta entre nós, os presumidos crescidos.

Pois de fato esse primeiro aspecto do problema levanta outro: o quanto é impensável, para dos muitos pais, tios, avós, senhoras e senhores frequentadores de cinema ou espectadores de desenhos animados matinais, haver mesmo uma resposta adequada ou uma sensibilidade correspondente à vida interior e à instalação da idade, e que lhes fizesse reagir de outra maneira, menos infantil, aos bens consumíveis aqui tratados. Se como pais ou responsáveis acabamos acompanhando nossos filhos e protegidos à estréia do filme A ou B, de classificação etária 10 ou 12 anos, é como pais e responsáveis que deveríamos nos comportar - o que está longe de significar semblante sisudo ou enfadonho durante aqueles minutos. O que ressalto, aqui, é que homens e mulheres de trinta, quarenta, cinquenta anos, têm cultivado vidas interiores juvenis que lhes mantém suscetíveis psicológica e sentimentalmente aos apelos coloridos e musicais das produtoras de TV e cinema.

Seria preciso - quem sabe num texto futuro - refletir sobre esse descompasso aparente entre a idade que temos biologicamente (e não digo corporalmente porque o corpo também foi infantilizado, e as roupas são apenas uma prova disso) e a que testemunhamos com nossos atos e expressões de vida mais ou menos ordenada interiormente. O fato é que, ainda que algum leitor possa estar torcendo o nariz para esta breve análise, se fôssemos melhor educados, expostos a melhores obras da cultura, atentos a sinais mais patentes e duradouros da arte e do engenho humano, dificilmente - para não dizer impossível - nos emocionaríamos, interessaríamos ou recomendaríamos os desenhos animados e filmes atuais que, convenhamos, são um tipo de perversão do universo infantil em prol da sedução dos corações adultescentes.

E assim chegamos ao segundo aspecto da questão anunciada parágrafos acima. Esses produtos cinematográficos ou televisivos não são dirigidos às crianças. Ao que tudo indica, ninguém - salvo raras exceções - está mesmo a pensar nelas. As histórias hoje apresentadas aos meninos como se fossem apropriadas para eles, têm dramas e complexidades próprias apenas da vida adulta. Namoro, traição, problemas financeiros, angústias profissionais ou vocacionais, tentações: toda parte cinzenta e prosaica da vida é-lhes oferecida aos seis, sete, oito anos de idade. E, como num passe de mágica (sic), nossas crianças estão menos ilusionadas, como diria Julián Marias; menos esperançosas na vida, sentindo o hiato da existência que separa-nos da plenitude e deveria ser observado apenas anos mais tarde.

Nossas crianças estão ficando velhas, e isto não é coisa recente. No Brasil, desde os tempos coloniais, como bem demonstrado por Gilberto Freyre em Casa-grande e Senzala, a infância era precocemente interrompida por marcos de transição biográfica artificialmente impostos. No caso dos meninos, a iniciação sexual aos doze ou treze anos. Às meninas, os arranjos de casamento que lhes rendia um senhor 30 a 40 anos mais velho, a partir de então responsável por sorver suas adolescências e juventudes. Freyre chega a mencionar o motivo de piada que muitos rapazes se tornavam por não revelar o sinal da sífilis (registro de atividade sexual iniciada anos antes e em profusão, como se desejava).

As propagandas atuais - a mídia em geral - esforça-se por criar mecanismos de "expulsão da infância", com apelos típicos da vida madura, travestidos de interesse e preocupação com os anseios infantis. Também as roupas, as músicas, as programações televisivas, parecem trabalhar incansavelmente na queda dos miúdos; na implantação das sombras, do desespero, da incompletude, da disputa e do fracasso nas almas antes ingênuas desses componentes do mundo. Em condições normais de temperatura e pressão, a perda do paraíso existencial ocorreria somente na adolescência, culminando mesmo na vida adulta e madura (quando o mundo oculta o mistério e grita seus medos racionais).

Os filmes classificados como infantis têm apelado a todas as implicações presentes na vida dos homens e mulheres e, desta maneira, criam uma zona paradoxal que "prende" as diferentes gerações: os mais velhos, por fraqueza psicológica e desejo pueril de Alice que não quer sair do país das maravilhas; as crianças, por sedução narrativa, que aproveitando-se do formato dito por infantil desses produtos, arrancam meninos e meninas de seus cenários de fábulas e instalações paradisíacas (onde tudo é abundante e puro), lançando-os no entediante e cinzento tabuleiro da sobrevivência social (onde muito é prosaico e frustrante).

Como sabemos, a sobrevivência às fases amargas e aos elementos contingentes da vida adulta se dá, especialmente, por um tipo de força misteriosa acessada e cultivada ainda na infância. Se nela apresentam-se-nos os deuses e heróis, bandidos e maus, nela nasce também o gerador de respostas às mais diferentes e complexas situações da maturidade. Para mim, é cada dia mais patente o fato de que meus contos de fada, tal como consegui preservá-los com bastante dificuldade, são as janelas pelas quais a existência suspira, abranda-se e se retroalimenta das imagens que sustentam-me como homem e também menino. 

A péssima vivência desse processo venturoso que transporta naturalmente cada um de nós do paraíso terreal para a agitação do mundo, talvez esteja na base de uma das maiores confusões do nosso tempo, percebida, mesmo na fila do cinema, nesses adultos de plástico e nessas crianças sem paz que dividem o saco de pipocas.

Por Tiago Amorim

25.2.17

Motivando os alunos para o estudo

Motivar o aluno para a aprendizagem, despertar a vontade de aprender, incentivar o interesse nos estudos... Quem nunca ouviu ou usou esses termos, consumindo-se em preocupação na busca pelos métodos ou estratégias que finalmente farão com que nossas crianças e adolescentes descubram a maravilha que é estudar e aprender?

Dar aulas é algo que faz parte da minha vida há 20 anos e apenas nos últimos dois anos é que "despertar o interesse dos alunos" e outras ideias similares deixaram de ser uma preocupação minha. E se você pensa que eu deixei de me preocupar porque descobri, finalmente, a estratégia perfeita para resolver o problema, lamento te decepcionar. A verdade é que eu entendi que, no que diz respeito aos estudos, essa é uma ideia que não apenas não faz sentido, como atrapalha o que entendemos por educação. Vou explicar.

Sempre gostei de começar as aulas com algo que chamasse a atenção dos alunos para o assunto. É a famosa captação. Ela é parte da rotina de quem faz questão de manter a audiência interessada no que vai dizer - e eu investia pesado nisso. Já me caracterizei de personagens divertidos, já fiz gincanas e competições, já usei imagens, vídeos, histórias, objetos, músicas e nem sei quantas atividades diferentes para ter certeza que os alunos jamais esqueceriam daquela aula - afinal, como eu aprendi na faculdade e nos comerciais de televisão, "é brincando que se aprende".

Pois bem. Acontece que com o passar do tempo comecei a perceber um fenômeno interessantíssimo: o momento da captação era sempre um sucesso; a hora de estudar, um desastre.

Os alunos riam e se divertiam com as atividades que eu preparava. Uma maravilha! O problema é que na hora que começava a parte deles no negócio - ler, reler, interpretar, escrever e pensar - ninguém queria saber de mais nada. Bom, "ninguém" é exagero; sempre temos alunos que fazem o que precisa ser feito. A maioria, no entanto, começava com as mesmas reclamações de sempre e qualquer tarefa era praticamente um parto!

Na mesma época comecei a trabalhar fora da sala de aula com alunos que tinham dificuldades nos estudos e foi quando fiz uma das grandes descobertas da minha vida pedagógica: NÃO é brincando que se aprende!

Antes que alguém queira me levar presa por apostasia e infração gravíssima às leis pedagógicas modernas, quero deixar claro que não estou dizendo que os alunos não podem aprender enquanto brincam, nem elogiando as aulas maçantes. Por favor, acompanhem o raciocínio.

A questão é que sempre que insistimos na ideia de que o aluno precisa aprender brincando, produzimos dois efeitos terríveis para a verdadeira educação:
  1. Passamos para o aluno a ideia de que estudar e aprender são atividades divertidas. E isso é um tremendo, tremendo engano! Porque a verdade é que o aprendizado é consequência  do estudo e estudar dá muito, muito trabalho!
  2. Passamos para o professor a ideia de que ele é o maior responsável pela motivação do aluno para o estudo - o que também não é verdade. Um professor pode ser lindo, maravilhoso, encantador e deslumbrante e ainda assim ter alunos em sua turma que não possuem qualquer motivação para os estudos.
"Ah, mas quanto absurdo você está dizendo! Eu conheço alguém que começou a gostar de Matemática só porque o professor o incentivou. E também tem aquele que...". Bom, eu também conheço muitas pessoas nesse estilo. Eu mesma fui incentivada por excelentes professores que tive e já ouvi de diversos alunos o quanto minhas aulas os incentivaram a gostar de ler ou outras coisas assim. Mas, e aqueles por quem eu gastei metade dos meus neurônios e nunca consegui encontrar um jeito de motivar? E todos aqueles que estudaram comigo, tiveram os mesmíssimos professores que eu e ainda assim não queriam nada com a vida?

O que eu quero dizer é que existem questões morais que antecedem às questões didático-pedagógicas. 

Uma virtude básica importantíssima para que alguém tenha um bom desempenho - seja na escola, seja na vida - é a fortaleza. Essa virtude, que se tornou uma palavra praticamente desconhecida no nosso mundo moldado pelo politicamente correto, cuja única função parece ser criar pessoas fracas, diz respeito a capacidade que um ser humano tem de enfrentar as dificuldades para propósitos nobres e bons. Agora veja: você não enfrenta nada enquanto assiste algo acontecer. "Enfrentar" é um verbo que implica movimento; uma ação com envolvimento intenso e que lembra luta, batalha, suor, cansaço e, muitas vezes, até lágrimas e sangue. 

Mas, afinal, que relação essa virtude pode ter com ensinar a estudar? Por que falar sobre caráter quando o assunto é desempenho acadêmico? Pelo que eu já disse: estudar é difícil. Mesmo!  Pergunte a qualquer pessoa que estuda de verdade. Eu já ouvi muitas vezes pessoas me dizendo: "Pra você é fácil porque você gosta de estudar." Não é não, gente! Ler textos difíceis cansa, pesquisar é complicado e escrever pode ser um exercício tão trabalhoso que às vezes dá vontade de chorar (sem exagero). Eu gosto, sim. Mas gosto porque o resultado desse trabalho - como de todos os bons trabalhos - me traz muita alegria. Pela graça de Deus meus pais me ensinaram a encontrar prazer em aprender e descobrir coisas. A questão é que até chegar lá onde a alegria mora existe um caminho a ser percorrido - e o resultado precisa valer a pena.

Agora veja a situação terrível em que estão nossas crianças: elas estão sendo ensinadas por professores que na maior parte do tempo culpam a si mesmos (e são apontados como culpados pela sociedade inteira) por não estar conseguindo motivar os alunos a aprender. "Precisa pôr mais tecnologia na sala de aula! Precisa dar aulas melhores para conter a evasão escolar! Precisa isso, precisa aquilo!". Muitas vezes os próprios pais assumem para si alguma culpa pelo fato de que a criança não estuda (e, consequentemente, não aprende). E enquanto isso, elas são ensinadas pela nossa sociedade que são vítimas de um sistema educacional ruim, uma escola ruim, uma vida ruim, e etc. No mesmo momento em que, o computador, a televisão e o videogame oferecem todo tipo de opções onde tudo é rápido, tudo é superficial, tudo é agitado e tão fácil que até ler um texto como esse, com um pouco mais de mil e quinhentas palavras, já é considerado um exercício impossível para a maioria de nós ("Isso não é um texto; é um livro!").

Agora me digam: como é que alunos moldados por esse sistema vão descobrir que, na verdade, aprender é algo que depende do trabalho deles? Como vão entender que, quando uma leitura está difícil, eles precisam ser fortes e perseverar no trabalho até conseguir vencê-lo e finalmente compreender o texto? Como vão aprender que prestar atenção em uma aula requer disciplina e autocontrole - que são uma verdadeira batalha contra nossa vontade de distrair o pensamento e voltar a atenção para outras coisas mais interessantes? Como vão aprender que o estudo é um exercício e que não podemos desistir no primeiro erro - nem no segundo, nem no terceiro, nem no que for necessário para que se encontre a resposta certa?

Quando estava no Ensino Médio eu tinha um professor de Biologia que mais faltava do que ia dar aula. Era escola pública, então não tinha muito o que fazer a respeito. Entrava um substituto que mandava a gente copiar qualquer coisa para passar o tempo. Eu ficava brava com aquilo e um dia reclamei para minha mãe, que assim não tinha como aprender. Ela me disse o que dizia sempre: "Quem faz a escola é o aluno. Pega o seu livro de Biologia e vai estudar". Meus pais nunca me deram a opção de me colocar como vítima do sistema; eles me fizeram ver que estudar era um trabalho meu e que eles esperavam que eu o fizesse.

Meu tempo com os alunos (tanto aqueles que têm um excelente desempenho nos estudos como aqueles com dificuldades para aprender) me tem feito pensar muito sobre tudo isso. E quanto mais estudo e pesquiso, mais acredito que o problema da nossa educação não é prioritariamente financeiro, nem pedagógico, nem mesmo estrutural; o problema da educação é, antes de tudo, moral. Se queremos que nossos alunos alcancem bom desempenho acadêmico, precisamos compreender a necessidade da educação do caráter e ensiná-los que aprender é consequência de um trabalho chamado "estudo". E que estudar dá, sim, muito trabalho.

Na educação por princípios nós usamos os princípios do autogoverno e do caráter cristão para ensinar às crianças que as dificuldades fazem parte da nossa vida e por meio delas nosso caráter é moldado por Deus, sendo necessário, para isso, aprender a governar a si mesmo de forma que suas decisões sejam tomadas com base em suas convicções, e não na sua vontade ou falta dela.

Antes, quando as crianças reclamavam que uma lição estava chata, eu me sentia culpada e pensava o que precisava fazer para motivá-los e deixar tudo mais divertido. Depois, minha resposta passou a ser: "Está chata porque é um exercício e dá trabalho. Seja forte e não desista até ter conseguido terminar. Imaginem que essa lição é uma pedra que apareceu no seu caminho. Se você se esforçar até conseguir ultrapassá-la, se tornará mais forte e vai lidar com as próximas pedras com maior facilidade; se desistir e sentar à beira do caminho, não só não se tornará mais forte, como também não chegará a lugar nenhum. Vamos, eu sei que vocês conseguem vencer essa!". Parece bobeira, mas com o tempo eles começaram a internalizar a ideia de que, assim como os heróis das boas histórias, que enfrentavam dragões e precisavam lutar com todas as forças, eles também têm suas pequenas batalhas e seus gigantes a derrotar. Essa é, aliás, mais uma razão para investir na formação literária das crianças e adolescentes. Coragem, perseverança, determinação - é isso que precisamos enfatizar! Porque a motivação precisa vir de dentro de um coração forte e pronto a vencer os desafios, custe o que custar.

27.1.17

Como ganhamos e perdemos as virtudes

Qualquer um que tenha tentado desenvolver a paciência, praticar o perdão ou ser mais generoso, sabe que o desenvolvimento de uma virtude necessita de tempo. Um ato não faz a virtude, nem mesmo dois, três e nem quatro. A repetição dos atos é imprescindível. Porém é necessária uma grande sequência de ações similares para que a qualidade do ato virtuoso se converta em uma característica da forma de ser de uma pessoa (I-II,51, 2). Em princípio, todos somos torpes e ineptos no nosso empenho de fazer o bem, porque ainda não estamos suficientemente familiarizados com a virtude como para que esta se vai convertendo em nossa segunda natureza. Isto é o que faz a virtude em nós, nos dotam de uma «segunda natureza» no sentido de que trabalham e desenvolvem a primeira, isto é, o temperamento ou a personalidade com que temos nascido. Tomam em si o que temos herdado e recebido e adicionam sobre ele qualidades virtuosas; amassam nossa personalidade, adaptando-o e configurando segundo uma bondade determinada. Assim, como uma obra de arte, necessita-se de tempo para moldar-nos como pessoa de bom caráter. As virtudes são provas de como é difícil chegar a ser bom, porque não é um processo instantâneo, mas que se consegue por meio de muita prática, com uma trabalhosa repetição de atos capazes de realizar a transformação que vai da possibilidade de ser bom a ser realmente bom. Segundo Santo Tomás, todos temos uma inclinação para o bem, temos a capacidade inicial para a virtude, a possuímos de forma iniciada, mas devemos desenvolvê-la até que se faça em nós um hábito. Desenvolver uma virtude supõe tomar uma inclinação e fortalecê-la até que se converta em hábito. A pessoa virtuosa desenvolveu seu potencial para o bem, partindo de sua capacidade para o bom comportamento e reeducando-a até fazer dela uma aptidão estável e previsível. Todos podemos fazer o bem de vez em quando, mas se o fazemos ocasional ou casualmente e não de forma habitual, ainda não somos pessoas de virtude. É próprio da pessoa virtuosa fazer o bem, é o que se espera dela, pois tem praticado por tanto tempo que ela se tornou semelhante a própria bondade. Portanto, isso não é acidental, mas a marca de quem ele é. É por isso que Tomás diz que a virtude converte em boa tanto a ação como a pessoa que executa. 

A princípio, ser bom nos é estranho, uma vez que ainda não somos. A princípio apenas balbuciamos o bem; necessitamos das virtudes para chegar a sermos eloquentes na bondade, e é imprescindível o tempo. Consideremos o quão difícil é fazer da compaixão nossa segunda natureza. Tornar-se bom é uma questão de praticar o bem durante muito tempo, ao menos o tempo suficiente para que a qualidade do ato bom já seja a compaixão, a paciência, a justiça ou o perdão, se transforme em uma qualidade pessoal do nosso ser. Para que isto ocorra, explica Tomás, «é necessário que o elemento ativo vença totalmente o elemento passivo» (ST, I-II, 51, 3). O «elemento passivo» representa o potencial; a capacidade para com a virtude. O «elemento ativo» é a qualidade de uma certa virtude que deve «atuar em» nós, que deve gravar seu bem específico em nossa pessoa para que, então, encarnemos a virtude. Quanto isto ocorre atuamos com justiça, com temperança ou com generosidade, porque as qualidades destes atos já são características de nós mesmos.

Ademais, quando Tomás afirma que não possuímos uma virtude até que a qualidade do ato virtuoso «nos vença totalmente», nos recorda que uma virtude é algo estável e firme. Não somos virtuosos se a qualidade do bem é inconstante; somente chegamos a sê-lo quando nossa bondade é previsível. Um único ato justo inicia a formação da justiça na pessoa, mas não é suficiente para imbuirmos da qualidade da justiça. Tomás, às vezes, usa a imagem do gotejamento da água em uma rocha. Assim como a água leva anos para deixar a sua impressão sobre a pedra, um ato virtuoso pode levar anos para imprimir a sua própria qualidade em nós. Se adquire uma virtude pouco a pouco, a qualidade do ato bom se imprime paulatinamente, transformando a pessoa desde suas potências para o bem até sua identificação com esse mesmo bem. A pessoa virtuosa quando tem o hábito de fazer boas ações, é plenamente virtuosa quando executa atos de justiça, misericórdia, compaixão ou perdão porque se ajusta ao que ela é e se expressa atuando deste modo; assim, a pessoa virtuosa não faz o bem por estar constrangida a isto, mas porque desfruta de ser ela mesma. Nas palavras do Aquinate, possuímos uma virtude quando tendemos a sua bondade «de modo natural».

Por Paul J. Wadell 
Tradução Rafael de Abreu Ferreira 

12.1.17

Sabe mais quem sofre

Será que existe algum tipo de atração pelo sofrimento? Por que não exitem livros de histórias de alegria completa, realização do começo ao fim, encontros amorosos felizes, descritos ao longo de todos os gozosos capítulos? Por que é o revés, a dificuldade, a dor, a infidelidade, o motivo dos argumentos mais interessantes, das narrativas mais famosas? Então será a vida mesmo a "arte do encontro, embora haja tanto desencontro"?

Sofrimento parece render boas histórias, muitas horas de terapia, longas conversas entre amigos, letras de música, estrofes de poesia. O mesmo não acontece - pelo menos na mesma proporção - com a alegria, a felicidade, o sucesso. Mesmo quando algo termina bem na ficção (seja um filme, um livro, etc), geralmente é resultado de uma trajetória de dificuldades, buscas, erros e sacrifícios. As mais belas histórias de amor - Romeu e Julieta, Os noivos, Amor de Perdição, etc - têm seus finais felizes após algum sofrimento. Se assim não o fosse, não as leríamos, nem escutaríamos com tanto interesse - tente imaginar a famosa história de Shakespeare começando bem, com os dois protagonistas podendo realizar seus sonhos e não encontrando nenhum impedimento externo. No mínimo sem graça, diríamos.

Quem são as pessoas mais fascinantes? As que passaram pela vida como um bon vivant, desfrutando da existência como quem tem manjar turco para sobremesa de segunda a domingo? Seriam estas, que não têm outra coisa a nos dizer senão coisas boas sobre a própria vida? Tenho a impressão que não - e corro o risco de dizer que esse tipo de pessoa priva-se, ou é privada, de um aspecto fundamental da vida humana.

Nossa atenção ao que sofre, nossa atração pelas histórias difíceis, nossa preferência pelos testemunhos heróicos (frutos de uma jornada de vitórias sobre grandes obstáculos) parece ser um tipo de correspondência. É como se reconhecêssemos nisso a nossa condição: viver é uma arte difícil, permeada de desencontros e sofrimentos de toda ordem, e as grandes narrativas funcionam como modelos de realização deste que parece ser nosso script comum. Não é a mesma coisa que dizer que nascemos para sofrer; mas nascemos, sim, com a possibilidade de sofrer e no sofrimento encontramos as leis que regem nossa existência.

Estar no mundo é admitir sua contingência - do mundo e da nossa vida individual. Portanto, as biografias mais admiráveis podem ser aquelas que absorvem essa circunstância  limitadora e, de alguma forma, a transcendem. Na hierarquia dos tipos de personagens literários, Northrop Frye destaca os míticos como os mais perfeitos. Se pensarmos em Hércules ou Perseu, por exemplo, perceberemos que sua grandeza advém da proporcionalidade de seus feitos, que são conquistas e realizações sobre as dificuldades e trabalhos que lhe foram impostos. Os personagens mais baixos, seguindo a teoria do crítico canadense, são aqueles chamados irônicos: abaixo de si mesmos, das circunstâncias e dos deveres pessoais. Se sofrem, é inconscientemente, pois são incapazes de projetar e pôr em movimento uma biografia de valor, que recuse a paralisia existencial, admita as dificuldades e opere com os fracassos e a incompletude. É a diferença entre Raskolnikov (de Crime e Castigo) e Leniza (de A Estrela Sobe). A busca do sucesso pela segunda - que deseja ardentemente ser uma estrela do rádio - é uma fina ironia do seu criador: não é isto a vida humana e a coisa que mais se lhe opõe é justamente essa imagem de palco e aplauso.

Nossa condição é dramática e o sofrimento é uma via de acesso às verdades que podemos reconhecer e testemunhar nesta vida. As delícias, os prazeres, o gozo, quando nos acontecem são uma espécie de alento ou consolo: servem para nos fortalecer naquilo que realmente nos torna humanos, dá-nos substância, Por isso, e neste sentido, é mais humano quem mais sofreu. A recusa do sofrimento (e não estou dizendo que devemos desejá-lo com toda força) é uma negação da própria condição, fruto de uma inversão de perspectiva, desde que Marx julgou o paraíso apenas terreal, Nietzsche quis ser um devoto apenas de Dionísio e eu e você confundimos existência com férias.

Digo a vocês: sabe mais de si quem mais sofreu, pois sofrer permite-nos acessar o fundamento da vida, um núcleo composto mais de tensão do que de usufruto. É o que nos faz literalmente tencionar nossas vidas para o que importa, vencendo a inércia característica da leniência domingueira. Talvez por isto Deus tenha nos oferecido modelos de sacrifício que, pelo que acreditamos, mereceram os maiores júbilos no céu - a começar pelo próprio Cristo. As marcas no rosto, as cicatrizes pelo corpo, os dramas vividos, os fracassos, em suma, a escuridão solitária pela qual todos passamos, é o que nos distingue, nos torna mais interessantes, nos forja humanos. Doenças, falta de dinheiro, dificuldades em casa, desemprego, etc: tudo é graça se admitida a perspectiva a que me refiro. Tudo é capítulo da aventura humana que perde para poder ganhar.

10.1.17

Educação clássica e homeschooling

Rafael Falcón fala da educação clássica como sendo a educação ideal e que a escola moderna não pode oferecer uma educação clássica.

 renata massa