6.12.15

Sublime comunhão de trapaceiros, vestíbulo do anticristo

A civilização pós-cristã contemporânea sepultou a ideia de virtude, seja no plano individual, seja no coletivo. Após as violentas assertivas de Nietzche, Freud e Marx - e, posteriormente, de seus epígonos filosóficos e ventríloquos universitários ao longo do século XX - , o bom caráter acabou por tornar-se uma espécie de impossibilidade sociológica, cultural. Os parâmetros estabelecidos à luz da obra desses mestres da prestidigitação teorética e, também da de alguns dos seus antepassados, como Hobbes e Maquiavel, passaram a ser sobretudo três: o insaciável império da vontade, o governo tirânico e libidinoso do inconsciente e a luta entre grupos vetorizados pelo critério material. De maneira decisiva e em nível até então inimaginável, a arte perdeu o vínculo com o belo e a política com o bem, dois transcendentais do ser.

Tornamo-nos sociedades de tarados impacientes, pessoas que exigem sem demora o cumprimento estrito de absolutamente todos os seus caprichos, pondo a culpa de qualquer infortúnio pessoal ou desejo insatisfeito nas injustiças sócio-políticas, nas desavenças de classe e no "preconceito", palavrinha mágica hoje capaz de auferir benesses estatais vultosíssimas em favor de quem a souber manipular - sempre a título do pagamento de dívidas atávicas que podem remontar ao paraíso adâmico. A máxima sartreana erigiu-se em norma pétrea: o inferno são os outros, mas numa conformação em que a tolerância à adversidade é zero. Em síntese, não apenas desacreditamos da virtude, mas lhe pusemos gigantescos obstáculos políticos, impedindo que aflore no tecido social, com as cada vez mais honrosas e miraculosas exceções.

Criamos uma cultura patógena, ou seja, fomentadora de enfermidades psíquicas em larga escola, como costuma afirmar o filósofo tomista Martín Echavarría, prolífico autor contemporâneo de importantes estudos na área de psicologia. Por sua vez, o espírito liberal engendrou no Ocidente um cenário no qual a norma é aprovar leis multiplicadoras dos confrontos entre grupos e indivíduos, na prática um fomento legislativo à inimizade, à divisão das sociedades em minorias cada vez mais numerosas que se odeiam com monolítica reciprocidade.

Como não poderia deixar de ser à vista do acima exposto, o homem contemporâneo é tribal, precisa afirmar-se nalgum agressivo grupo identidário excludente de todos os demais, com o luxuoso apoio do Estado. A um só tempo, ele é espiritualmente emasculado, moralmente tíbio e fisicamente violento. Sobretudo o homem filho da geração neta do "é proibido proibir", expressão parida, formulada, concebida na nunca assaz incensada anarquia do Maio de 68. A propósito deste evento de falsas intenções libertárias, dizia Raymond Aron que o seu propósito era, acima de tudo, criar uma máquina de guerra para destruir as universidades como centros de ensino e atacar a ordem social inteira. Um radicalismo itinerante que hoje reencarna no Brasil, na pele dos grupos de "manifestantes" financiados indiretamente pelo governo federal para galvanizar toda a política e evitar o nascimento de qualquer verdadeira oposição.

Ora, retirado do sofrimento humano o seu sentido transcedente, que o cristianismo tão benevolente trouxera ao mundo, não restam senão desespero e agonia, cupidez e desordem, maldade e desonra. Extirpada do horizonte social a noção de culpa, assim como as virtudes teologais - fé, esperança e caridade -, substituídas pela revolucionária tríade fraternidade-igualdade-liberdade, as pessoas tendem a criar mecanismos de autocomiseração e desculpar-se previamente a si próprias, arrolando estapafúrdias justificativas para os mais hediondos atos, sempre tendo à mão algum intelectual, jurista ou parlamentar para lhes dar suporte.

Em verdade, a marcha da insanidade é, na acepção do termo, política: o Estado transformou-se no difusor maior da maldade, na medida em que ele próprio se pretende normatizador do certo e do errado moral, bem ao modo hegeliano. Ele é babá de caprichos e taras potencialmente multiplicáveis ao infinito, garantidor do fundamental direito de jogar todos contra todos e indomável inimigo dos resquícios de cristianismo - principalmente do cristianismo católico tradicional, aquele que defende dogmas bimilenares e a exclusividade salvífica da Igreja.

Na Nova Ordem Mundial, só um arremedo de religião ecumênica poderá ter lugar, e a própria Igreja pós-Vaticano II ajudou a erigir o presente estado de coisas, com gravíssimas omissões e um neomagistério dialogado feito de encomenda para não ferir susceptibilidades. Mas se - como diz Santo Tomás de Aquino no clássico De Malo - um pecado é tanto mais grave quanto maior é o bem a que se opõe, quão enorme culpa têm essas autoridades eclesiásticas prevaricadoras do seu múnus espiritual! Descumpridoras da norma segundo a qual, como dizia Leão XIII, o Estado sem a Igreja é um corpo sem alma. Ou, noutras palavras: a matéria sem um espírito que a vivifique é decomponível de per si.

Se a política é hoje esta sublime comunhão de trapaceiros cujo objetivo é manter-se no poder a qualquer custo, tenhamos em vista que a natureza não dá saltos e que para chegarmos a este padrão de degradação foi preciso transformar a política em algo com princípio e fim em si mesma. Desvinculá-la de quaisquer pilares espirituais. 

Coisa inédita desde a Antiguidade mais remota.

1.11.15

Dificuldades gerais da psicologia contemporânea para compreender a natureza do amor

A psicologia atual, tanto em sua vertente experimental, como em sua vertente clínica e outras, surge no fim do século XIX de uma matriz materialista, pelo qual se designou, com razão, como uma psicologia sem alma. Sem alma foi a psicologia experimental de Wundt, foram as psicologias funcionalistas americanas, a reflexologia e o conducionismo e, também a psicanálise. Desde uma perspectiva influenciada pelo positivismo, e antes pela crítica kantiana da psicologia racional, essas formas de psicologia consideram a alma em geral como um princípio de explicação da mente e da conduta humana arcaica e mítica. O homem não seria outra coisa que matéria organizada que não se distinguiria qualitativamente de outras formas de organização da matéria. A matéria é princípio potencial, não real e determinante, receptora de perfeição, mas imperfeita por natureza. Todas as variedades de materialismo são filosofias da potência e não do ato, e, nessa medida, são incapazes de compreender a perfeição e o bem. Por isso, para a psicologia materialista a perfeição é uma espécie de utopia, quase que diríamos, de anomalia. O normal seria a inércia e a imperfeição.

Este materialismo, que se fundava a psicologia clássica do fim do século XIX e princípio do século XX, era em geral mecanicista, mas sobretudo era um biologismo evolucionista. O ser humano, mera organização da matéria sem dimensão transcendente, teria surgido da mutação casual da matéria. Ao ser esta mutação casual, e não dirigida inteligentemente, seu resultado não seria um bem, porque o bem é algo apetecido, querido. O homem não seria alguém querido, nem muito menos, querido por si mesmo. Para ser querido por si mesmo, deveria ser algo dotado de intimidade, ou seja, alguém dotado da capacidade de voltar sobre si mesmo por reflexão e, por tanto, alguém que pode possuir o bem de modo estável. Se o homem não é um bem, nem capaz de possuir o bem, se não foi querido inteligente e pessoalmente, tampouco é alguém que pode ser querido por si mesmo, ou seja, não é suscetível de amor de amizade.

O ponto de vista biológico, aliás, sustentado por todas essas correntes, concebe o ser humano como um mero ser da natureza, imerso em seu meio ambiente, em intercâmbio com este com a finalidade de adaptar-se. Os organismos biológicos implicam uma pluralidade de componentes em equilíbrio. Quanto esse equilíbrio se rompe, surgem as necessidades que se traduzem na consciência como impulso para a superação do desprazer e para a realização do prazer. Isto leva a relação com o meio a fim de obter o necessário para restaurar o equilíbrio interno e o equilíbrio com o meio. Nesta perspectiva, todo ato mental e toda conduta exterior se explicariam em última instância como movimento para a compensação de uma privação, de uma carência ou debilidade. Ou seja, todo amor é amor de concupiscência. Não há lugar para a ação que brota da perfeição, do bem difusível de si (porque tal bem não existiria), da doação desinteressada. Todo amor seria egoísta, possessivo, voraz, mesquinho. Não pode haver amizade.

Este materialismo biologista e evolucionista, elimina ou reduz as faculdades superiores do homem a meros instrumentos ordenados a adaptação. A inteligência não seria uma faculdade pela qual o ser humano se ordena a verdade como seu bem, senão o homem de todas as ações adaptativas que supõem a resolução de problemas não previstos por instintos. Deste modo, o verdadeiro dá lugar ao útil. O pragmatismo é um pressuposto consciente ou inconsciente em quase todas estas correntes. Também o construtivismo se apoia sobre estes pressupostos, como se vê tão claramente em seu precursor, Jean Piaget. O conhecimento seria a construção de ações que são esquema de transformação da realidade. Para essa concepção, conhecer é transformar a realidade, manipulá-la. No fundo, não há verdadeira cognição. Se não há cognição, não há contemplação do bem. Sem contemplação do bem, não há amizade em seu sentido pleno, senão concupiscência, amizade deleitável e amizade útil. Mas não amizade bela, não esse amor pelo qual se ama a pessoa como tal, como outro eu, como uma alma em dois corpos.

Ainda mais deteriorada que a inteligência são as concepções de vontade, o apetite racional despertado pela cognição da verdade. Sem vontade, não há amor de amizade, só pode haver amor de concupiscência, não só no sentido do amor que é para alguém, mas amor como ato do apetite concupiscível, amor do bem deleitável, e derivadamente do que é meio para obtenção do bem deleitável. Não é, portanto, estranha a atitude geral de desconfiança da psicologia contemporânea para a amizade. É que, neste contexto teórico, as relações humanas não podem ser outra coisa que mutua instrumentalização: os pais usariam seus filhos para prolongar seu narcisismo; namorados se usariam mutuamente para obterem satisfação física ou controle moral sobre os outros; o psicoterapeuta não poderia considerar-se amigo de seu paciente, porque poderia ficar intrelaçado nos conflitos do paciente. Isto é assim porque em todo amor nós estaríamos buscando a nós mesmos, e não iria dirigido ao outro conservando sua própria personalidade e bem.

Não é estranho, por tudo isto, que, falando muito sobre o amor, o desejo, as relações objetais ou interpessoais, as influências familiares e sociais sobre a personalidade, etc., a psicologia contemporânea em geral tem negligenciado quase completamente o tema da amizade ou a relegou ao plano da quimera. Evidentemente, nenhum espaço se dá aqui para a ordem sobrenatural e o amor de caridade.

Por Dr. Martín Federico Echavarría

27.9.15

5 etapas para alfabetizar seus filhos em casa

Carlos Nadalim apresenta o e-book "As 5 Etapas Para Alfabetizar Seus Filhos em Casa - O Guia Definitivo" que traz a essência do método eficaz de alfabetização. O e-book é repleto de exercícios divertidíssimos, que além de ensinarem, aproximam pais e filhos.

13.9.15

O império da ignorância

Como é possível que, num país onde cinquenta por cento dos universitários são reconhecidamente analfabetos funcionais, o currículo acadêmico de um professor continue sendo aceito como prova inquestionável de competência?

Vamos falar o português claro: Aquele que não dá o melhor de si para adquirir conhecimento e aprimorar-se intelectualmente não tem nenhum direito de opinar em público sobre o que quer que seja. Nem sua fé religiosa, nem suas virtudes morais, se existem, nem os cargos que por ventura ocupe, nem o prestígio que talvez desfrute em tais ou quais ambientes lhe conferem esse direito.

Discussão pública não é mera troca de opiniões pessoais, nem torneio de autoimagens embelezadas: é iminentemente intercâmbio de altos valores culturais válidos para toda uma comunidade considerada na totalidade da sua herança histórica, e não só num momento e lugar.

O direito de cada um à atenção pública é proporcional ao seu esforço de dialogar com essa herança, de falar em nome  dela e de lhe acrescentar, com as palavras que dirige à audiência, alguma contribuição significativa. O resto, por "bem-intencionado" que pareça, é presunção vaidosa e vigarice.

Todos os males do Brasil provêm da ignorância desses princípios. Políticos, empresários, juízes, generais e clérigos incultos, desprezadores do conhecimento e usurpradores do seu prestígio, são os culpados de tudo o que está acontecendo de mau neste país, e que, se esses charlatães não forem expelidos da vida pública, continuarão aumentando, com ou sem PT, com ou sem "impeachment", com ou sem "intervenção militar", com ou sem Smartmatic, com ou sem Mensalão e Petrolão.

Desprezo pelo conhecimento e amor à fama que dele usurpa mediante o uso de chavões e macaquices são os pecados originais da "classe falante" no Brasil.

Só o homem de cultura pode julgar as coisas na escala da humanidade, da História, da civilização. Os outros seguem apenas a moda do momento, criada ela própria por jornalistas incultos e professores analfabetos, e destinada a desfazer-se em pó à primeira mudança da direção do vento.

A cultura pessoal é a condição primeira e indispensável do julgamento objetivo. A incultura aprisiona as almas na subjetividade do grupo, a forma mais extrema do provincianismo mental.

Vou lhes dar alguns exemplos de desastres nacionais causados diretamente pela incultura dos personagens envolvidos.

Só pessoas prodigiosamente incultas podem ter alguma dificuldade de compreender que uma eleição presidencial com apuração secreta, sem transparência nenhuma, é inválida em si mesma, independentemente de fraudes pontuais terem ocorrido ou não.

O número de jumentos togados e cretinos de cinco estrelas que, mesmo opondo-se ao governo, raciocinam segundo a premissa de que a sra. Dilma Rousseff foi eleita democraticamente em eleições legítimas, premissa que lhes parece tão auto evidente que não precisa sequer ser discutida, basta para mostrar o estado de calamidade política e econômica em que se encontra o país vem precedido de uma calamidade intelectual indescritível, abjeta, inaceitável sob todos os aspectos.

Quando na década de 90 os militares aceitaram e até pediram a criação do "Ministério da Defesa", foi sob a alegação de que nas grandes democracias era assim, de que só republiquetas tinham ministérios militares.

Respondi várias vezes que isso era raciocinar com base no desejo de fazer boa figura, e não no exame sério da situação local, onde a criação desse órgão maldito só serviria para aumentar o poder dos comunistas. Mil vezes o Brasil já pagou caro pela mania de macaquear as bonitezas estrangeiras em vez de fazer o que a situação objetiva exige. Esse caso foi só mais um da longa série.

Mesmo agora, quando a minha previsão se cumpriu da maneira mais patente e ostensiva, ainda não apareceu nenhum militar honrado o bastante para confessar sua incapacidade de relacionar a estrutura administrativa do Estado com a disputa política substantiva. Continuam teimando que a ideia foi boa, apenas, infelizmente, estragada pelo advento dos comunistas ao poder - como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra, como se fosse tudo uma soma fortuita de coincidências, como se demolição do prestígio militar não fosse um item constante e fundamental da política esquerdista do país e como se, já no governo FHC, a criação do Ministério não fosse concebida como um santo remédio, com aparência legalíssima, para quebrar a espinha dos militares.

Um dos traços mais característicos da incultura brasileira, já assinalado por escritores e cientistas políticos desde a fundação da República pelo menos, é a subserviência mecânica a modelos estrangeiros copiados sem nenhum critério.

Numa sociedade culturalmente atrofiada, a coisa mais inevitável é que todas as correntes de opinião que aparecem na discussão pública sejam apenas cópias ou reflexos de modelos impostos, desde o exterior, por lobbies e grupos de pressão que têm seus próprios objetivos globais e não estão nenhum pouco interessados no bem-estar do nosso povo.

Cada "formador de opinião" é aí um boneco de ventríloquo, repetidor de slogans e chavões que não traduzem em nada os problemas reais do país e que, no fim das contas, só servem para aumentar prodigiosamente a confusão mental reinante.

Como é possível que, num país onde cinquenta por cento dos universitários são reconhecidamente analfabetos funcionais e os alunos dos cursos secundários tiram sistematicamente os últimos lugares nos testes internacionais, o currículo acadêmico de um professor continue sendo aceito como prova inquestionável de competência?

Não deveria ser justamente o oposto? Não deveria ser um indício quase infalível de que, ressalvadas umas poucas exceções, o portador dessa folha de realizações é muito provavelmente, por média estatística, apenas um incompetente protegido por interesses corporativos? Terá sido revogado o "pelos frutos os conhecereis?". A interproteção mafiosa de carreiristas semianalfabetos unidos por ambições grupais e partidárias tornou-se critério de qualificação intelectual? 

Não é mesmo um sinal, já não digo de mera incultura, mas de positiva debilidade mental, que os mesmos apologistas do establishment universitário fossem os primeiros a apontar como mérito imarcessível do candidato Luís Ignácio Lula da Silva, em duas eleições, a sua total carência de quaisquer estudos formais ou informais? Não chegava a prodigiosa incultura do personagem a ser louvada como sinal de alguma sabedoria infusa? Todo sujeito que, à exigência de conhecimento, opõe o louvor evangélico aos "simples", é um charlatão. Jesus prometeu aos simples um lugar no paraíso, não um palanque ou uma cátedra na Terra.

Por Olavo de Carvalho

29.8.15

A formação do imaginário

O imaginário é um lugar, na alma humana, em que nasce toda a inteligência. Sua misteriosa ordem gera crenças e valores que nos dominam por dentro, influenciando e às vezes determinando o que pensamos e sentimos. Formar corretamente o imaginário é, portanto, condição sine qua non do desenvolvimento humano - do ponto de vista intelectual, psicológico e moral. 

22.8.15

O que é imaginário?

Embora tratado pela filosofia moderna e psicologia, entre outras ciências, como realidade psicológica vinculada à imaginação, geralmente em oposição à realidade, ele é muito mais do que isso. Em verdade, o imaginário é a contraparte de um dos planos da realidade concreta, formada também pelo mundo imaginal (onde encontramos, por exemplo, os mitos e arquétipos).

Aqui, no entanto, é bom deixarmos as tentativas de definição de lado. Trata-se de um mundo de símbolos, não de conceitos. Não o visitamos, nem conhecemos, senão através de discursos analógicos. Por exemplo, tomemos imaginário e imaginal como faces de uma mesma moeda e reparemos como isso diz muito mais e melhor sobre essa realidade que os unifica do que muitos discursos descritivos e analíticos. Outra metáfora bem ilustrativa é a do guarda-roupas, cunhada por Edmund Burke para se referir ao que "guarda" a "imaginação moral", também utilizada por C. S. Lewis como porta de entrada para seu mundo das famosas crônicas de Nárnia, adivinha em que "mundo" fica Nárnia?

Falar dessa realidade, portanto, é falar metaforicamente de um lugar. Nesse sentido, o imaginário de cada um pode ser vasto ou ínfimo, ser do tamanho de um grande país ou uma rua estreita; oceano, ou poça d'água. Sua amplitude é maior ou menor, conforme a disposição natural e a educação que cada indivíduo tenha recebido, nisso inclusos elementos do mundo imaginal. Além do tamanho, ele também possui diferentes modos de organização, que podem ser mais ou menos eficientes, coesos, etc.

Tanto a estrutura como a abrangência do imaginário dependem, pois, de um processo de formação que principia quando o indivíduo começa a receber imagens do mundo, pelos cinco sentidos, e também do mundo imaginal, cujas fontes são as mais variadas (por exemplo: contos de fadas e ritos, como batizados, etc). O processo se complexifica com o desenvolvimento da memória e da imaginação - duas faculdades intimamente ligadas ao imaginário - que podem buscar experiências do passado e transformá-las, produzindo combinações mais ou menos criativas.

Qual é a diferença, então, entre imaginário, memória e imaginação?

"Memória" é aquele repositório de imagens recebidas desde o nascimento, a partir do qual se torna possível a noção de "biografia" (embora essa mesma noção dependa ainda de um processamento sofisticado da memória, e portanto, não possa confundir-se com ela). "Imaginação" é uma faculdade que transita entre a memória e os cinco sentidos, buscando, combinando e modificando as impressões antigas e recentes. "Imaginário", enfim, é o universo mais amplo que se compõem de memórias e criações, de impressões com os mais diversos graus de interferência, do próprio sujeito, e que talvez, pudéssemos definir como o "mundo interior" em que vive o "eu".

Ora, esse "mundo interior" deve estar, por natureza, sujeito a constantes mutações, já que recebe a interferência ininterrupta de novas imagens coletadas pelos sentidos e da própria ação da imaginação; não obstante, há nele certa fixidez, derivada do seu tipo de organização - que o sujeito recebe (mais uma vez) em parte da organização do próprio mundo imaginal que o rodeia, em parte de suas próprias inclinações, em parte da memória e da educação. Portanto, seja qual for a constituição do imaginário, é evidente que ela deve ter considerável influência sobre os pensamentos e sentimentos do indivíduo, às vezes ao ponto de determiná-los completamente, tornando-se verdadeiro princípio formador de sua personalidade. 

Tomar consciência do que está subjacente à organização de imagens no "mundo interior" é descobrir o que poderíamos chamar de "visão de mundo", sinalizando que não se trata ainda de um posicionamento meditado, mas de algo como uma predisposição geral e semi-consciente para observar, pensar e sentir certas coisas e de certo modo. Essa tomada de consciência é indispensável, tanto mais porque, embora o imaginário não seja racional em si mesmo, a inteligência humana deve trabalhar sobre ele, como ensinavam os escolásticos: nihil in intellectu nisi prius in sensu, etc.

E com essa tomada de consciência é inevitável não descobrir, também, que uma visão de mundo nunca é construída isolada da visão de mundo prevalente na família, sociedade, na cultura em que se vive. Ou seja, mais do que uma relação entre essas visões, há verdadeira dependência, ainda que parcial, ao menos até essa conscientização.

Algumas perguntas se insinuam quase de imediato: como exatamente tomar consciência disso? De que modo o imaginário influi sobre o comportamento humano, e até que ponto? Quais são seus riscos? Existe defesa contra essa influência? Senão, há algum modo de aproveitar-se dela para o bem? É possível reformar o imaginário, caso haja necessidade disso? No curso A introdução à formação do Imaginário, trato desses problemas, tendo diante de mim, como objetivo primeiro fornecer o instrumental necessário para essa tomada de consciência e ajudar no desenvolvimento psicológico, intelectual e moral dos alunos.

9.8.15

Vaticano II: Hermenêutica da continuidade ou da ruptura

Prof. Alberto Zucchi e Robson Nascimento, da Associação Cultural Montfort, respondem a perguntas sobre a hermenêutica da continuidade ou da ruptura, na análise do Vaticano II - categorias lançadas por Bento XVI em seu Discurso à Cúria de 22 de dezembro de 2005.

31.7.15

Se eu não fosse católico...

Se eu não fosse católico e estivesse procurando a verdadeira igreja no mundo de hoje, eu iria em busca da única igreja que não se dá muito bem com o mundo. Em outras palavras, eu procuraria uma igreja que o mundo odiasse. Minha razão para fazer isso seria que, se Cristo ainda está presente em qualquer uma das igrejas do mundo de hoje, Ele ainda deve ser odiado como o era quando estava na terra, vivendo na carne.

Se você tiver que encontrar Cristo hoje, então procure uma igreja que não se dá bem com o mundo. Procure uma igreja que é odiada pelo mundo, como Cristo foi odiado pelo mundo. Procure pela igreja que é acusada de estar desatualizada com os tempos modernos, como Nosso Senhor foi acusado de ser ignorante e nunca ter aprendido. Procure pela igreja que os homens de hoje zombam e acusam de ser socialmente inferior, assim como zombaram de Nosso Senhor porque Ele veio de Nazaré. Procure pela igreja que é acusada de estar com o diabo, assim como Nosso Senhor foi acusado de estar possuído por Belzebu, o príncipe dos demônios.

Procure a igreja que em tempos de intolerância (contra a sã doutrina), os homens dizem que deve ser destruída em nome de Deus, do mesmo modo que os que crucificaram Cristo julgavam estar prestando serviço a Deus.

Procure a igreja que o mundo rejeita porque ela se proclama infalível, pois foi pela mesma razão que Pilatos rejeitou Cristo: por Ele ter se proclamado a si mesmo a verdade. Procure a igreja que é rejeitada pelo mundo, assim como Nosso Senhor foi rejeitado pelos homens. Procure a igreja que em meio às confusões de opiniões conflitantes, seus membros a amam do mesmo modo como amam a Cristo e respeitem sua voz, como a voz do seu fundador.

E então você começará a suspeitar que se essa igreja é impopular com o espírito do mundo é porque ela não pertence a esse mundo e uma vez que pertence a outro mundo, ela será infinitamente amada e infinitamente odiada, como foi o próprio Cristo. Pois só aquilo que é de origem divina pode ser infinitamente odiado e infinitamente amado. Portanto, essa igreja é divina.

Arcebispo Fulton J. Sheen. Retirado de Fratres in unum.com

4.7.15

O invencível exército dos levianos

Só pode ser alegre quem sabe ser triste. Quem consegue  viver os momentos de pesar, inescapáveis neste mundo repleto de dores e perdas, sem fingimentos de nenhuma espécie, sem entorpecer a consciência perante as questões morais decisivas. Em síntese, a genuína alegria é atributo de quem costuma avaliar com critérios objetivos o próprio agir. Nos antípodas desta situação equilibrada estão as pessoas que carregam no coração uma falsa leveza, a qual tem nome próprio e efeitos funestos: leviandade.

O leviano é alguém que inoculou na alma o hábito da dissipação mental. Geralmente ri muito e por motivos tolos, fala demasiado, é assertivo com relação a futilidades e crê em formulazinhas  que o induzem a buscar a felicidade perfeita nesta vida. Para tanto, necessita deformar o conceito de felicidade e colocar no lugar dele placebos de auto-ajuda, de fácil apelo para o seu caráter camaleônico. Como saliente o filósofo Dietrich von Hildebrand num livro sobre as virtudes éticas fundamentais, o leviano contenta-se com decisões baseadas numa impressão fortuita, para não dizer irresponsável, do bem e do mal, do belo e do feio, daí o fato de poder ser ocasionalmente amável, generoso e solícito, mas sempre sem verdadeira nobreza.

A falta de silêncio interior faz do leviano uma pessoa sem princípios sólidos, os quais dependem de valores perenes fundamentados na realidade. Ocorre que uma torrente de sensações voluptuosas - em permanente confronto umas com as outras - acossa o espírito das criaturas caídas neste deplorável estado, transformando-as em joguete das debilidades que vão tomando conta do núcleo do seu ser, de maneira paulatina e progressiva. Este perpétuo sacolejar interior mata a possibilidade de firmeza de caráter e debilita a potência volitiva, razão pela qual o querer do leviano é inconstante. Uma mesma coisa pode aparecer-lhe ora boa, ora má, sem justificativas plausíveis para a mudança de avaliação, tudo depende de humores circunstanciais.

Não é muito difícil de perceber que o leviano é alguém vocacionado a deslealdade, mesmo sem o saber. Trata-se de uma espécie de profissional da opinião irrefletida - típica de indivíduos cujas escolhas decisivas oscilam conforme momentâneas conveniências. Não que o leviano seja incapaz de amizade, mas na prática é inapto para perceber o que realmente nobilita uma relação entre amigos. Ele vive na superfície das próprias satisfações ou insatisfações cotidianas, e, na embriaguez das selvagens emoções às quais sucumbe, não mantém laços firmes com as demais pessoas. O leviano é, pois, o visceral amigo do próprio umbigo, e este seu resiliente egoísmo não provém do acaso, mas da incapacidade de renúncia, nota distintiva do amor. Ora, só renuncia quem possui, e o leviano jamais entra na posse efetiva dos bens imateriais: a beleza, a verdade, a unidade e a bondade são ideias voláteis, etéreas, na cabeça de quem vai sobrevivendo nesta falsa leveza de espírito. 

Nas palvras de Hildebrand, no turbilhão de sua essência o homem leviano não consegue estabilidade nem mesmo nas coisas que leva a sério. É como uma peneira humana que deixa vazar o essencial, o sumo, o mais importante. Não sendo, pois, fiel às próprias impressões, porque estas mudam duma hora para outra, ao leviano está vedada a fidelidade às outras pessoas - não propriamente por malícia, e sim por inépcia. A sua desgovernada intensidade afetiva é uma erupção vulcânica que destrói a hierarquia dos valores e o faz perder a crença em si mesmo, embora camufle esta insegurança existencial com a assertividade frívola acima mencionada.

O leviano comete suicídio psíquico sem ter a mais ínfima noção do próprio estado. A sua ânsia de gozar o momento presente, maligno carpe diem do qual não consegue desagrilhoar-se, é signo perceptível da incapacidade de ir às camadas mais profundas da ação moral. Aqui, não sejamos eufemísticos: o leviano não ama; ele se entretém. Portanto, a cultura do entretenimento - imperante no mundo globalizado onde tudo tende a uma forçosa homogeneização a partir do que é baixo, vulgar, grotesco - é o habitat natural em que sua irreflexão deita raízes. O coração leviano nunca será de ninguém, como diz uma canção popular.

Quando os chamados "bens culturais", expressão equívoca a não mais poder, induzem à leviandade em larga escala, acontece o que vemos hoje: cresce o número de gente incapaz de manter relações profundas, sinceras, amigas. A alegria tem uma morte social, mas não para dar lugar à tristeza, como seria de se esperar, e sim a dissipações de todos os tipos. Em tal configuração, é loucura dar sem exigir de imediato algo em troca; a propósito, uma sociedade de levianos é hospício a céu aberto onde zumbis se arrastam pela vida apáticos diante do bem e do mal.

Esta cínica alegria dos levianos faz com que seu contato com o mundo exterior seja representativo numa comunicabilidade ilusória, na qual a troca de bens reais, objetivos, simplesmente não existe. Se tal patologia, por desgraça, começa a ganhar terreno, a anestesia coletiva apodera-se do conjunto da sociedade de maneira insidiosa e faz destas almas ocas um exército imbatível, composto de rostos sem feições indentificáveis. 

Qualquer analogia da realidade descrita nos parágrafos acima com o Brasil contemporâneo não será leviandade. 

23.6.15

Sexólogos mirins

Em praticamente tudo o que leio e ouço a respeito de sexo, desejo e amor, reina a mais tosca e pueril indistinção entre as experiências mais diversas associadas a esses termos, quase sempre tomados como sinônimos.

No seu nível mais imediato e fisiológico, o desejo é um fenômeno puramente interno, produto da química hormonal sem objeto definido e que, por isso mesmo, pode ser em seguida projetado sobre qualquer objeto real ou imaginário. É uma pura urgência fisiológica, um "desejo de gozar" que aparecesse sem a necessidade de nenhum excitante externo e pode ser  satisfeito por mera fricção mecânica da genitália - masculina ou feminina.

Bem diferente é o desejo despertado pela visão direta ou indireta de um objeto, de um corpo desejável. Invariavelmente o fator excitante é aí algum traço sexual secundário ao qual o sujeito seja particularmente sensível: peitos, traseiros, pernas, olhos, etc. Este é o nível que corresponde tecnicamente à noção escolástica da concupiscentia. Comentário de garotões de praia ante as transeuntes que lhes parecem gostosas são uma enciclopédia das expressões verbais que manifestam esse tipo de desejo.

Num terceiro nível o desejo não é despertado por nenhuma característica física mais saliente, mas por uma impressão geral indefinida e não-localizada de beleza ou charme, quase uma aura mágica em torno do objeto desejado.

Logo acima disso vem a paixão, o enamoramento, o coup de foudre que torna o objeto uma presença obsessiva e insubstituível na mente do apaixonado. Esta emoção é repleta de ambiguidades. Traz inevitavelmente consigo a ansiedade, o medo da rejeição, e aciona um conjunto de mecanismos psicológicos de defesa contra a frustração possível.

Vencidas essas ambiguidades, o enamoramento pode se consolidar num sonho conjugal, o anseio de ter a pessoa amada ao nosso lado para sempre. Neste nível o desejo assume tons de um valor moral, destinado a manifestar-se na aceitação comum de sacrifícios para o benef'ício mútuo, para a criação de uma família, para a aceitação de responsabilidades sociais, etc. A resistência maior ou menor às dificuldades pode levar a resultados que vão desde a criação de uma família estável até uma variedade de desastres conjugais.

Só no topo da experiência conjugal com todas as suas ambiguidades é que pode, no entanto, surgir o verdadeiro e genuíno amor, no sentido pleno da palavra, que é o impulso firme, constante e irrevogável de tudo sacrificar pelo bem da pessoa amada, de perdoar sempre e incondicionalmente os seus defeitos e pecados, de protegê-la de todo mal e de toda tristeza, ainda que com risco da nossa própria vida, e de conservá-la ao nosso lado como o nosso bem mais precioso, não só nesta existência terrestre, mas por toda a eternidade.

Cada um desses níveis engloba e transcende o anterior, e só quem passa à fase seguinte compreende o que estava em jogo na anterior.

É evidente que só quem percorreu o trajeto inteiro está habilitado a formar uma visão abrangente e objetiva da experiência sexual, que os outros só enxergam de maneira parcial e subjetivista - não raro solipsista - determinada pela sua fixação numa etapa que se recusa a passar.

Infelizmente, este último é o caso da maioria dos "formadores de opinião", universitários ou midiáticos, que se oferecem gentilmente para modelar a vida sexual alheia segundo a medida do seu próprio subdesenvolvimento existencial.

Muitos não se contentam com isso e fazem da sua própria consciência atrofiada um critério de moralidade com base no qual julgam e condenam o que não compreendem. São esses que denomino "sexólogos mirins": almas atrofiadas que querem ajustar a vida sexual alheia ao molde da sua própria pequenez.

Por Olavo de Carvalho

20.6.15

A ideologia de gênero

O perigo está mais próximo do que você imagina. O plano para introduzir a ideologia de gênero nas escolas saiu do Congresso Nacional e está nas Câmaras Municipais de todo o país, bem perto da sua casa. Afinal, o que está acontecendo? Como agir diante dessa nova ameaça à família brasileira? 
Entenda já os riscos e saiba o que fazer.

31.5.15

A civilização do prazer

Qualquer pessoa medianamente dotada e ainda não dopada pelo imperativo de um otimismo que é julgado hoje virtude máxima, e máxima lucidez, qualquer pessoa, em suma, que ainda não esteja possessa pelo sistema, já percebeu que vive dentro de uma decomposição civilizacional cuja característica principal é a de um furioso hedonismo. Todos querem sentir, o minuto que passa, a golfada de ar que respira, a curva que faz a sessenta ou oitenta quilômetros numa rua movimentada. A fisionomia da juventude em tal clima é curiosamente apática, em contradição com o frenesi das reações, e quase se pode garantir que nunca houve em toda a história do mundo uma humanidade tão destituída de gosto e de prazer. Este paradoxo é aliás a bem conhecida contradição moral do prazer: o primeiro de seus malogros é a perda do prazer. Seria, porém, um engano tirar daí uma conclusão tranquilizadora firmada na suposição de que tal malogro corrigirá o extraviado. Ao contrário, exaspera-o.

De onde vem esse extravio moral. Em cada indivíduo a moléstia procede de pequenas e primárias opções subversivas em que, por uma antiga dolência, essa alma volta sua preferência para as coisas exteriores e inferiores; e, deixando-se dominar, torna-se depressa escravo delas. A conquista das coisas inferiores nos afaga ao mesmo tempo o orgulho e a concupiscência, ao contrário do alcance das coisas do alto que nos aprimoram a humanidade e o gosto da sabedoria. O praticante da moral do prazer se torna grosseiro, embotado, às vezes enganosamente aprimorado na conquista de tais bens e, inevitavelmente, como já vimos, se torna exigente de doses maiores, de prazeres mais violentos.

Dias atrás dizia-me alguém com bem fundado estupor: "Quando a moda do sexo passar, e os impotentes de amor descobrirem a enjoada monotonia do sexo sem amor, sem grande amor, passarão a matar. A matar em grupos. Comunitariamente. Haverá cursilhos para ensinar a matar sem ódio, como hoje se ensina o sexo sem amor."

Como terá começado o fenômeno coletivo, civilizacional, que hoje tornou o juízo final assunto de café-em-pé? Creio que já abordei este assunto aqui e ali dúzias de vezes. É uma de minhas obsessões em resposta ao obsessivo rumo do mundo. Pode-se dizer que a história sofreu esta trágica deflexão no século em que os homens afirmaram um novo humanismo afrontosamente autônomo, como se fossem deuses, e afrontosamente afirmou uma nova religião de seu invento, onde Deus entrará somente como objeto indireto e remoto.

Neste tempo que apenas trouxe a eclosão de uma longa e misteriosa carga de ressentimentos acumulados, o orgulho do homem foi espicaçado pelo dilatado domínio das coisas exteriores e inferiores trazido pelas ciências. Muita gente até hoje não aprendeu que a astronomia  é um conhecimento inferior à sabedoria: seu objeto, pelo fato de ser sóis e galáxias a dançarem numa distância de trinta milhões de anos-luz, ou mais, nem por isso é ontologicamente superior, à entomologia, que estuda formigas, cigarras e demais insetos prodigiosamente dotados de vida. Certamente espantarei alguém, ou confirmarei em alguém a hipótese já alimentada de minha insensatez, se disser que o cientificismo pós-renascentista foi um dos primeiros afluentes desta subversão torrencial cuja pororoca já se ouvem os rugidos. A especulação sobre as coisas inferiores, mas facilmente saborosa que a especulação das coisas do alto, que pedem virtudes e dons, trouxe consigo o domínio efetivo, sobre as mesmas coisas materiais. A austera ciência brindou-nos com a técnica. A técnica presenteou-nos com o delírio das sensações fortes, matar 200.000 habitantes de Hiroxima num segundo, ou ir à lua como programa de televisão.

Eu já escrevi que a técnica é uma das glórias do homem, e que o domínio dos elementos é um direito de seus títulos. Mas também já escrevi e torno a escrever que certa catástrofe da história, como a querer repetir coletivamente o pecado original, nos trouxe a subversão cujos efeitos hoje nos afligem. Não a todos; evidentemente, se a aflição consciente fosse geral, esse temor assim difundido já seria o começo de uma sabedoria convalescente. Infelizmente, estamos muito longe de tal difusão. Entre os homens simples, ainda não deformados pela radioatividade da explosão nuclear do eu humano, na renascença e na reforma, encontram-se muitos que já são sensíveis ao temor e tremor que andam nas almas sensíveis. 

Mas a maior aberração de nosso tempo não está nas exposições de pornografia, não está na busca desenfreada do prazer sob todas as formas, não está no alastramento do ateísmo que ganhou título de mentalidade oficial em mais da metade do mundo. Não, a maior aberração de nosso tempo está no entusiasmo com que os homens de Igreja aplaudem o dito mundo moderno e ainda censuram à Igreja a falta de tato de não ser atraente para os moços que correm atrás do prazer. Li essa queixa em Le Monde, que, com isto, exaltava o queixoso: o cardeal Alfrink. Eis as palavras aladas do cardeal holandês: "Como explicar que a Igreja se mostre tão pouco atraente para nos homens de nossa época? Os moços que andam à procura de Deus raramente se dirigem à Igreja. Por quê? Que fazer? Não deveríamos nos indagar se não fomos nós que obscurecemos a mensagem envagélica?" 

Respondo ao cardeal holandês e a todos os outros que dizem coisa parecida, com o atrevimento de atribuir à Igreja, à Tradição, aos Santos, à Nossa Senhora, ao Sangue de Cristo, a fisionomia que os homens de nossa época acham pouco atraente. E respondo dizendo: a Igreja parece ter-se apagado como a estrela dos Magos, e em lugar de sua santa visibilidade vê-se um Sínodo, e dentro dele veem-se e ouvem-se os senhores cardeais e arcebispos que se inculcam como Igreja, e que publicam, difundem, com grande aparato, tamanho e tão repulsivo amontoado de asneiras. Acrescento ainda uma resposta pessoal à pergunta: o programa mínimo que o pobre homem de nosso tempo ainda espera é a lealdade de dizer que a Igreja não é isto que fala pela boca dos Alfrinks, dos Arns, e outros duzentos. Como ninguém diz, e estou velho demais para fazer tais cerimônias, digo-o eu: eles mesmos dizem aos berros que já não são católicos e se envergonham de um dia terem pertencido a uma Igreja que não acompanha as orgias dos moços e dos velhos; eles querem agradar aos homens, ainda que isto os leve ao desprezo de Deus.

Por Gustavo Corção

2.5.15

Conformidade com a vontade de Deus

"A caridade é o vínculo da perfeição" (Colossenses 3:14).

Toda a nossa perfeição consiste em amar ao nosso amabilíssimo Deus. E toda a perfeição do amor de Deus, consiste em unir a nossa vontade com a sua santíssima vontade. O principal efeito do amor diz São Dionísio, é unir a vontade daqueles que se amam de maneira, que se torne uma e a mesma vontade. Por conseguinte, quanto mais uma pessoas está unida com a vontade divina, maior será o seu amor. As penitências, meditações, comunhões e obras de caridade praticadas para com o nosso próximo, são de certo agradáveis a Deus, mas quando? Quando estas obras são feitas em conformidade com a sua vontade, mas quando elas não se praticam pela vontade de Deus, não só lhe são desagradáveis, mas odiosas e merecedoras unicamente de castigo. Se um amo tivesse dois criados, dos quais um trabalhando todo dia, mas conforme a sua própria vontade, e o outro trabalhando à vontade do seu amo, seguramente o amo estimaria mais o segundo do que o primeiro. Como podem nossas ações promover a glória de Deus, senão forem conformes ao seu divino agrado?

"O Senhor, disse o profeta a Saul, não deseja sacrifícios, mas obediência a sua vontade: acaso pede o Senhor holocaustos e vítimas, e não obediência à sua voz?" (I Samuel 15:22-23). Aquele que trabalha segundo a sua própria vontade, e não conforme a vontade de Deus, comete uma espécie de idolatria, porque em lugar de adorar a vontade divina, adora de alguma maneira a sua própria. 

A maior glória, pois, que nós podemos dar a Deus, é cumprir sua bentida vontade em tudo. O nosso Redentor, que baixou do céu à terra para promover a divina glória, cumprindo com a vontade divina, veio principalmente ensinar-nos a assim o praticarmos, pelo seu mesmo exemplo. Escutemo-lo, como São Paulo no-lo descreve, falando ao seu Eterno Pai: "Vós não tendes querido sacrifício nem oblação, porém haveis-me dado um corpo [...]. Então eu disse, eis me aqui ó Deus, para fazer a vossa vontade" (Hebreus 10:5-9).

Vós tendes recusado as vítimas que os homens vos tem oferecido, e me ordenastes que sacrificasse o corpo que me haveis dado, eis-me pronto a fazer a vossa vontade. E ele repetidas vezes declara que não veio fazer a sua vontade, mas sim a de seu Eterno Pai: "Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas sim para cumprir a daquele que me enviou" (São João 6:38).

E nisto desejava Ele, que o mundo conhecesse o amor que tinha a seu Pai, na sua obediência à sua vontade, a qual era que Ele fosse crucificado sobre uma cruz para a salvação do gênero humano. Por isso, quando o Senhor se adiantou a encontrar seus amigos, no horto de Getsêmani, que vinham para prendê-lo e matá-lo, Ele disse: "Eu me entrego ao seu furor, para que o mundo veja que eu amo a meu Pai e que cumpro o que meu Pai me tem ordenado. Levantem-se e vamos sair daqui" (São João 14:31).

E desta maneira cumprindo, com a divina vontade, Ele disse que conhecia quem era seu irmão: "Aquele que fizer a vontade de meu Pai, que está no céu, esse é meu irmão" (São Mateus 11:50).

Composto por Santo Afonso Maria de Ligório. Leia o livro completo aqui.

18.4.15

Marxismo

Ao menos Marx qualificava de proletário quem trabalhava; depois da Escola de Frankfurt e do PT, surge a valorização dos desqualificados e da estética do nojo.

Karl Marx podia ter todos os defeitos do mundo, desde a vigarice intelecutal até as hemorroidas, mas ele sabia que a palavra "proletário" significava "gente que trabalha" e não qualquer Zé-Mané.

Ele combatia o capitalismo porque achava que os ricos enriqueciam tomando o dinheiro dos pobres, o que é talvez a maior extravagância matemática que já passou por um cérebro humano, mas reconheça-se o mérito, ele nunca confundiu trabalhador com vagabundo, povo com ralé.

Alguns discípulos bastardos do autor de "O Capital", uns riquinhos muito frescos e pedantes, fundaram um instituto em Frankfurt com o dinheiro de um milionário argentino e resolveram que valorizar antes o trabalho honesto do que os vícios e o crime era uma deplorável concessão de Marx ao espírito burguês.

Usando dos mais requintados instrumentos da dialética, começaram ponderando que o problema não era bem o capitalismo e sim a civilização, e terminaram tirando daí a conclusão lógica de que para destruir a civilização, o negócio era dar força aos incivilizados contra os civilizados.

Os frankfurtianos não apostavam muito no paraíso socialista, mas acreditavam que a História era movida pela força do "negativo" (uma sugestão de Hegel que eles tomaram ao pé da letra) e que, portanto, o mais belo progresso consiste em destruir, destruir e depois destruir mais um pouco. Tentar ser razóavel era apenas "razão instrumental", artifício ideológico burguês. Séria mesmo, só a "lógica negativa". A destruição era feita em dois planos:

Intelectualmente, consistia em pegar um a um todos os valores, símbolos, crenças e bens culturais milenares e dar um jeito de provar que no fundo era tudo trapaça e sacanagem, que só a Escola de Frankfurt era honesta, precisamente porque só acreditava em porcaria - coisa que seu presidente, Max Horkheimer, ilustrou didaticamente pagando salários de fome aos empregados que o ajudavam a denunciar a exploração burguesa dos pobres. Isso levou o nome hegeliano de "trabalho do negativo". 
A premissa subjacente era: 

Se alguma coisa sobrar depois que a gente destruir tudo, talvez seja até um pouco boa. Não temos a menor ideia do que será e não temos tempo para pensar em tamanha bobagem. Estamos ocupados fazendo cocô no mundo. No plano da atividade militante, tudo o que é bom deveria ser substituído pelo ruim, porque nada no mundo presta, e só a ruindade é boa. A norma foi seguida à risca pela indústria de artes e espetáculos. A música não podia ser melodiosa e harmônica, tinha de ser no mínino dissonante, mas de preferência fazer um barulho dos diabos.

No cinema, as cenas românticas foram substituídas pelo sexo explícito. Quando todo mundo enjoou de sexo, vieram doses mastodônticas de sangue, feridas supuradas, pernas arrancadas, olhos furados, deformidades físicas de toda sorte - fruição estética digna de uma plateia high brow.

Nos filmes para crianças, os bichinhos foram substituídos por monstrengos disformes, para protegê-las da ideia perigosa de que existem coisas belas e pessoas boas. Na indumentária, mais elegante que uma barba de três dias, só mesmo vestir um smoking com sandálias havaianas - com as unhas dos pés bem compridas e sujas, é claro. A maquiagem das mulheres deveria sugerir que estavam mortas ou pelo menos com aids. 

Quem, na nossa geração, não assistiu a essa radical inversão das aparências? Ela está por toda a parte. Logo esse princípio estético passou a ser também sociológico. O trabalhador honesto é uma fraude, só bandidos, drogados e doentes mentais têm dignidade. Abaixo o proletariado, viva a ralé. De todos os empreendimentos humanos, os mais dignos de respeito eram o sexo grupal e o consumo de drogas.

De Gyorgy Lukacs a Herbert Marcuse, a Escola de Frankfurt ilustrou seus próprios ensinamentos, descendo da mera revolta genérica contra a civilização à bajulação ostensiva da barbárie, da delinquência e da loucura. 

Vocês podem imaginar o sucesso que essas ideias tiveram no meio universitário. Desde a revelação dos crimes de Stálin, em 1956, o marxismo ortodoxo estava em baixa, era considerado coisa de gente velha e careta.

A proposta de jogar às urtigas a disciplina proletária e fazer a revolução por meio da gostosa rendição aos instintos mais baixos, mesmo que para isso fosse preciso a imersão preliminar em algumas páginas indecifráveis de Theodor Adorno e Walter Benjamin, era praticamente irresistível às massas estudantis que assim podiam realizar a coincidentia oppositorum do sofisticado com o animalesco.

Com toda a certeza, a influência da Escola de Frankfurt, a partir dos anos 60 do século passado, foi muito maior sobre a esquerda nacional que a do marxismo-leninismo clássico.

Sem isso seria impossível entender o fenômeno de um partido governante que, acuado pela revolta de uma população inteira, e não tendo já o apoio senão da ralé lumpenproletária remunerada a pão com mortadela e 35 reais, ainda se fecha obstinadamente na ilusão de ser o heroico porta-voz do povão em luta contra a "elite".

O Caderno de Teses do V Congresso do PT é um dos documentos mais reveladores que já li sobre o estado subgalináceo a que os ensinamentos de Frankfurt podem reduzir os cérebros humanos.

Por Olavo de Carvalho

17.4.15

Sexualidade

"Que todos respeitem o matrimônio e não desonrem o leito nupcial, pois Deus julgará os libertinos e adúlteros" (Hebreus 13:4).

A tese aqui defendida é exigente, porém acredita-se que seja a única correta. Existem muitas formas de combinar as peças que compõe a sexualidade humana, porém apenas uma delas é capaz de humanizar o ser humano.

Elevar e integrar o sexo com a inteligência, vontade e sentimentos é humanizá-lo conforme a integralidade do homem que engloba não apenas sua natureza corpórea, mas também espiritual. Isso só é possível  quando todos os elementos que compõe a sexualidade humana estão presentes de forma harmônica. A combinação dos fatores; diferenciação, complementariedade, fecundidade e amor; só é possível dentro da família tradicional de fundação matrimonial. Querendo ou não, a natureza humana é imutável nesse aspecto e de qualquer outra forma perde-se tempo.

Apesar do mundo caminhar a passos largos rumo a normalização do homossexualismo, da pedofilia e da aceitação plena do sexo despojado do eros e da fecundidade; a família tradicional continua sendo o projeto vital das pessoas de boa vontade. A tentativa de equipará-la à diversas outras agremiações existentes é decepcionante, entre outros motivos, por não se coadunar com o anseio humano de transcendência e infinitude.

O casal é um verdadeiro agente de transcendência. Carrega dentro de sua própria natureza um poder criador que só é possível como obra de um Absoluto ou participação Nele. É verdadeiramente surpreendente que de duas intimidades surja uma terceira jamais antes criada, irrepetível. Todo filho, é pois, um dom, um mistério e uma surpresa. A sacralidade do sexo está, com efeito, intimamente ligada à sacralidade da vida. Deixa de ser, portanto, meramente um ato biológico, para ser um verdadeiro excercício de transcendência, pois é uma real participação na força criadora. Deveria ser um verdadeiro escândalo que não nos admiremos frente uma realidade que clama forças superiores e divinas. A negação desse deslumbramento dá origem a uma explicação fria, positivista e incoerente para o surgimento da vida; pois a matéria não é condição de possibilidade para o surgimento de uma nova vida.

A relação sexual está, portanto, naturalmente ordenada para a procriação da mesma forma que o ato de alimentar-se está para a nutrição. Despojar artificialmente o sexo da fecundidade é, pois, como comer e vomitar. Atua-se hoje desse modo porque vivemos em uma cultura que vê o filho como uma cruz, uma desgraça e agindo dessa forma torna-se impossível de unir o sexo ao eros, uma vez que separado da fecundidade.

O amor tende naturalmente a ser fecundo e o eros implica doação total e absoluta; que não pode ser manifesta quando há falta de confiança e reservas internas à ideia de uma vida compartilhada com o outro. No eros encontra-se de repente uma pessoa em particular que é bela e amável como nenhuma outra e que precisamente por isso, torna-se alguém sem a qual a nossa felicidade se apresenta como impossível. O enamorado quer a enamorada por si mesma e não pelo prazer que lhe possa proporcionar. A atração física não é primária. O eros é, pois, uma forma de relação interpessoal na qual a sexualidade humana adquire seu sentido. O eros atua, portanto, como amor-dádiva-necessidade; uma afirmação do outro que tende para a união com ele. No eros uma pessoa concreta, única e irrepetível se converte no meu projeto pessoal de vida.

Quem está no eros prefere partilhar o infortúnio com o ser amado do que tentar ser feliz de qualquer outra maneira. Por isso que o sexo vivenciado sem o eros é como um sorriso falso, uma careta, uma máscara. Da mesma forma que o sorriso deveria representar a alegria; a entrega corporal deveria representar uma entrega total e não apenas a satisfação de um instinto. Sem o eros ter-se-ão, portanto, experiências sensíveis, mas não interiores.

O eros apesar de nunca perder a atitude contemplativa da pessoa amada, deve, no entanto, converter-se em amor como tarefa. O sexo está para o amor e não o amor para o sexo. Somente dentro do amor conjugal ele deixa de ser tirânico, porque não pode produzir por si mesmo diversos elementos sem o qual o eros se extingue. Por isso, que a vida sexual levada a sério facilmente decepciona, deve ser portanto desinteressada, porém não banalizada, para não correr o risco de vir a ser melancólica.

Créditos ao Fides Quaerens Intellectum

9.3.15

A liberdade

"Irmãos, vocês foram chamados para serem livres. Que essa liberdade, porém, não se torne desculpa para vocês viverem satisfazendo os instintos egoístas. Pelo contrário, disponham-se a serviço uns dos outros através do amor" (Gálatas 5:13).

A liberdade sempre foi o grande sonho da humanidade, mas principalmente na época moderna. 

Martinho Lutero (líder da Reforma Protestante) inspirou-se neste texto da Epístola aos Gálatas e a conclusão foi de que a regra monástica, a hierarquia e o magistério lhe pareciam como um julgo de escravidão do qual era preciso se libertar.

Posteriormente, o período do iluminismo foi totalmente guiado por este desejo de liberdade, que se julgava ter finalmente alcançado. Mas também o marxismo se apresentou como estrada em direção à liberdade.

O que se defende não é a liberdade, mas o libertinismo. O eu absoluto, que não depende de nada e nem de ninguém, que é livre para fazer tudo o que quiser. Isto é a degradação do homem, não é a conquista da liberdade: o libertinismo não é liberdade, é antes a falência da liberdade.

São Paulo ainda acrescentou "[...] disponham-se a serviço uns dos outros através do amor". Isto é, a liberdade se realiza paradoxalmente no servir. Nós nos tornamos livres, se nos tornamos servos uns dos outros. Paulo coloca todo o problema da liberdade na luz da verdade do homem. Uma vez que o homem não é um absoluto, quase como se o eu pudesse isolar-se e comportar-se somente conforme a própria vontade. É contra a verdade do nosso ser. 

A nossa verdade é que, antes de tudo, somos criaturas de Deus e vivemos na relação com o Criador. Somos seres relacionais. Somente aceitando esta nossa relacionalidade entramos na verdade, de outro modo, caímos na mentira e nela, ao fim, nos destruímos.

Somos criaturas, portanto dependentes do Criador. No período do iluminismo, isto aparecia como uma dependência da qual era necessário libertar-se. Na realidade, porém, dependência fatal seria somente se este Deus Criador fosse um tirano, não um ser bom, somente se fosse como são os tiranos humanos. 

Mas a relacionalidade criatural também implica num segundo tipo de relação. Estamos em relação com Deus, mas juntamente com isso, como família humana, estamos também em relação um com o outro. 

Este é outro ponto de grande importância. Somente aceitando o outro, aceitando também a aparente limitação que deriva para a minha liberdade do respeito pela do outro, somente inserindo-me na rede de dependências que nos faz uma família única, estou em caminho para a libertação comum.

Contudo, qual é a medida da participação da liberdade? O homem precisa de ordem e de direito, para que possa assim realizar-se a sua liberdade, que é uma liberdade vivida em comum. Como podemos achar esta ordem justa, na qual ninguém seja oprimido, mas cada um possa dar a sua contribuição para formar esta espécie de concerto das liberdades? Se não há uma verdade comum do homem tal qual aparece na visão de Deus, permanece somente o positivismo, e se tem a impressão de algo imposto. Daí, essa rebelião contra a ordem e o direito como se se tratasse de uma escravidão.

Mas se podemos encontrar a ordem do Criador na nossa natureza, a ordem da verdade que dá a cada um o seu lugar, ordem e direito podem ser exatamente os instrumentos da liberdade contra a escravidão do egoísmo. Assim, a primeira realidade a respeitar, portanto, é a verdade: liberdade contra a verdade não é liberdade. Servir um ao outro cria o espaço comum da liberdade.

Portanto, sem a verdade não há ordem e nem direito, sem ordem e sem direito, não há verdadeira liberdade, tornamo-nos ao invés de homens livres, escravos de nossas paixões, buscando apenas o prazer próprio, longe do serviço para com os irmãos.

Adaptação de Montfort

1.3.15

A verdade

"Se vocês guardarem a minha palavra, vocês de fato serão meus discípulos; conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês" (João 8:32).

Nos dias de hoje, o que mais se escuta é a afirmação "a verdade não existe". Se diz que cada um tem a sua opinião, que não existe verdade e cada um passa a agir de acordo com as próprias convicções.

Entretanto, a verdade é objetiva e não subjetiva. A verdade depende do objeto ou da realidade e não do sujeito. É o objeto ou a realidade que produz a ideia e não a ideia que produz o objeto.

Sendo assim, a verdade é a adequação da ideia ao objeto, é o objeto que define a ideia. A verdade é captada por nossa inteligência.

No entanto, para o mundo atual é o sujeito que produz a realidade. Imagine que você resolveu pegar carona com um amigo. Porém, ele entra na contramão, vem um caminhão na direção de vocês. Você avisa o seu amigo, mas ele afirma que não vê o caminhão, pois o caminhão na opinião dele não existe e continua seguindo na contramão... Veja bem, não é a nossa ideia que cria o caminhão. Ele não depende da nossa opinião, continua existindo apesar daquilo que achamos sobre ele.

Se não temos uma ideia comum baseada no ser concreto, nós vivemos num mundo de sonhos, cada um no seu sonho. O que torna impossível qualquer diálogo. Só se pode conversar, jogar xadrez ou futebol se temos a mesma ideia retirada dos objetos.

Tal subjetivismo teve início com o livre-exame da bíblia de Martinho Lutero (líder da Reforma Protestante), que consistia em cada um ler a bíblia e fazer sua própria interpretação. O idealismo alemão (Fichte, Schelling e Hegel) passou da bíblia para o mundo, passando a interpretar também a realidade cada um a sua maneira.

Concluímos com uma citação da encíclica Sapientiae Christianae, do papa Leão XIII:

"Recuar diante do inimigo, ou calar-se, quando de toda parte se ergue tanto alarido contra a verdade, é próprio do homem covarde ou de quem vacila no fundamento de sua crença. Qualquer destas coisas é vergonhosa em si; é injuriosa a Deus; é incompatível com a salvação tanto dos indivíduos como da sociedade e só é vantajosa aos inimigos da fé".
 renata massa