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27.1.19

26.1.19

Brasil, a última cruzada

A série "Brasil, a última cruzada" é um documentário com seis episódios
no qual se revisa a história antiga do Brasil.

12.1.19

As Artes do Belo

As Artes do Belo são fundamentais para a formação da personalidade e da civilização, assim também suas perversões são a base para sua destruição. Acrescente-se que tais perversões não raro, especialmente a partir do século XX, se acompanham de doutrinas que as querem justificar, e ter-se-á uma das razões do atual estado de coisas no mundo. Para agravar o quadro, ademais, temos que até filósofos tomistas acabam por contribuir para essa situação dramática ao aderir à doutrina segundo a qual as Artes do Belo não têm por fim último senão fazer obras belas. Mas também a joalheria ou a costura podem produzir obras belas, e nem por isso se dizem Artes do Belo, além de que negar que o fim último destas artes seja fazer propender ao bom e ao verdadeiro é negar o dito pelos maiores filósofos de todos os tempos e pelos mesmos maiores artistas de todos os tempos.

20.7.17

Adultos infantis e crianças velhas

Um fenômeno interessante tem se arvorado: os filmes e desenhos animados classificados como infantis estão seduzindo mesmo os adultos, que vêm lotando salas de cinema e consumindo em outras circunstâncias os produtos dirigidos supostamente às crianças. Também é de se notar a crescente qualidade técnica que estes mesmos produtos demonstram, oferecendo ao espectador - seja ele de que idade for - universos de cores e encantamentos bastante impressionantes.

A questão suscitada a partir desta observação sociológica, por assim dizer, tem dois aspectos. O primeiro, refere-se à óbvia infantilização dos homens e mulheres, cada vez mais sedentos de "ilusão" divertida que os desinstale da vida, geralmente pequena quanto aos critérios da emoção - a ponto de derramarem lágrimas quando Nemo encontra seu pai, ou rir como se não houvesse amanhã quando Shrek faz alguma sandice. A situação é mesmo patética, e a recusa de percebê-la é sintomática da falta de decoro - emocional, sentimental, perspectivo, argumental e biográfico - que se apresenta entre nós, os presumidos crescidos.

Pois de fato esse primeiro aspecto do problema levanta outro: o quanto é impensável, para dos muitos pais, tios, avós, senhoras e senhores frequentadores de cinema ou espectadores de desenhos animados matinais, haver mesmo uma resposta adequada ou uma sensibilidade correspondente à vida interior e à instalação da idade, e que lhes fizesse reagir de outra maneira, menos infantil, aos bens consumíveis aqui tratados. Se como pais ou responsáveis acabamos acompanhando nossos filhos e protegidos à estréia do filme A ou B, de classificação etária 10 ou 12 anos, é como pais e responsáveis que deveríamos nos comportar - o que está longe de significar semblante sisudo ou enfadonho durante aqueles minutos. O que ressalto, aqui, é que homens e mulheres de trinta, quarenta, cinquenta anos, têm cultivado vidas interiores juvenis que lhes mantém suscetíveis psicológica e sentimentalmente aos apelos coloridos e musicais das produtoras de TV e cinema.

Seria preciso - quem sabe num texto futuro - refletir sobre esse descompasso aparente entre a idade que temos biologicamente (e não digo corporalmente porque o corpo também foi infantilizado, e as roupas são apenas uma prova disso) e a que testemunhamos com nossos atos e expressões de vida mais ou menos ordenada interiormente. O fato é que, ainda que algum leitor possa estar torcendo o nariz para esta breve análise, se fôssemos melhor educados, expostos a melhores obras da cultura, atentos a sinais mais patentes e duradouros da arte e do engenho humano, dificilmente - para não dizer impossível - nos emocionaríamos, interessaríamos ou recomendaríamos os desenhos animados e filmes atuais que, convenhamos, são um tipo de perversão do universo infantil em prol da sedução dos corações adultescentes.

E assim chegamos ao segundo aspecto da questão anunciada parágrafos acima. Esses produtos cinematográficos ou televisivos não são dirigidos às crianças. Ao que tudo indica, ninguém - salvo raras exceções - está mesmo a pensar nelas. As histórias hoje apresentadas aos meninos como se fossem apropriadas para eles, têm dramas e complexidades próprias apenas da vida adulta. Namoro, traição, problemas financeiros, angústias profissionais ou vocacionais, tentações: toda parte cinzenta e prosaica da vida é-lhes oferecida aos seis, sete, oito anos de idade. E, como num passe de mágica (sic), nossas crianças estão menos ilusionadas, como diria Julián Marias; menos esperançosas na vida, sentindo o hiato da existência que separa-nos da plenitude e deveria ser observado apenas anos mais tarde.

Nossas crianças estão ficando velhas, e isto não é coisa recente. No Brasil, desde os tempos coloniais, como bem demonstrado por Gilberto Freyre em Casa-grande e Senzala, a infância era precocemente interrompida por marcos de transição biográfica artificialmente impostos. No caso dos meninos, a iniciação sexual aos doze ou treze anos. Às meninas, os arranjos de casamento que lhes rendia um senhor 30 a 40 anos mais velho, a partir de então responsável por sorver suas adolescências e juventudes. Freyre chega a mencionar o motivo de piada que muitos rapazes se tornavam por não revelar o sinal da sífilis (registro de atividade sexual iniciada anos antes e em profusão, como se desejava).

As propagandas atuais - a mídia em geral - esforça-se por criar mecanismos de "expulsão da infância", com apelos típicos da vida madura, travestidos de interesse e preocupação com os anseios infantis. Também as roupas, as músicas, as programações televisivas, parecem trabalhar incansavelmente na queda dos miúdos; na implantação das sombras, do desespero, da incompletude, da disputa e do fracasso nas almas antes ingênuas desses componentes do mundo. Em condições normais de temperatura e pressão, a perda do paraíso existencial ocorreria somente na adolescência, culminando mesmo na vida adulta e madura (quando o mundo oculta o mistério e grita seus medos racionais).

Os filmes classificados como infantis têm apelado a todas as implicações presentes na vida dos homens e mulheres e, desta maneira, criam uma zona paradoxal que "prende" as diferentes gerações: os mais velhos, por fraqueza psicológica e desejo pueril de Alice que não quer sair do país das maravilhas; as crianças, por sedução narrativa, que aproveitando-se do formato dito por infantil desses produtos, arrancam meninos e meninas de seus cenários de fábulas e instalações paradisíacas (onde tudo é abundante e puro), lançando-os no entediante e cinzento tabuleiro da sobrevivência social (onde muito é prosaico e frustrante).

Como sabemos, a sobrevivência às fases amargas e aos elementos contingentes da vida adulta se dá, especialmente, por um tipo de força misteriosa acessada e cultivada ainda na infância. Se nela apresentam-se-nos os deuses e heróis, bandidos e maus, nela nasce também o gerador de respostas às mais diferentes e complexas situações da maturidade. Para mim, é cada dia mais patente o fato de que meus contos de fada, tal como consegui preservá-los com bastante dificuldade, são as janelas pelas quais a existência suspira, abranda-se e se retroalimenta das imagens que sustentam-me como homem e também menino. 

A péssima vivência desse processo venturoso que transporta naturalmente cada um de nós do paraíso terreal para a agitação do mundo, talvez esteja na base de uma das maiores confusões do nosso tempo, percebida, mesmo na fila do cinema, nesses adultos de plástico e nessas crianças sem paz que dividem o saco de pipocas.

Por Tiago Amorim

12.1.17

Sabe mais quem sofre

Será que existe algum tipo de atração pelo sofrimento? Por que não exitem livros de histórias de alegria completa, realização do começo ao fim, encontros amorosos felizes, descritos ao longo de todos os gozosos capítulos? Por que é o revés, a dificuldade, a dor, a infidelidade, o motivo dos argumentos mais interessantes, das narrativas mais famosas? Então será a vida mesmo a "arte do encontro, embora haja tanto desencontro"?

Sofrimento parece render boas histórias, muitas horas de terapia, longas conversas entre amigos, letras de música, estrofes de poesia. O mesmo não acontece - pelo menos na mesma proporção - com a alegria, a felicidade, o sucesso. Mesmo quando algo termina bem na ficção (seja um filme, um livro, etc), geralmente é resultado de uma trajetória de dificuldades, buscas, erros e sacrifícios. As mais belas histórias de amor - Romeu e Julieta, Os noivos, Amor de Perdição, etc - têm seus finais felizes após algum sofrimento. Se assim não o fosse, não as leríamos, nem escutaríamos com tanto interesse - tente imaginar a famosa história de Shakespeare começando bem, com os dois protagonistas podendo realizar seus sonhos e não encontrando nenhum impedimento externo. No mínimo sem graça, diríamos.

Quem são as pessoas mais fascinantes? As que passaram pela vida como um bon vivant, desfrutando da existência como quem tem manjar turco para sobremesa de segunda a domingo? Seriam estas, que não têm outra coisa a nos dizer senão coisas boas sobre a própria vida? Tenho a impressão que não - e corro o risco de dizer que esse tipo de pessoa priva-se, ou é privada, de um aspecto fundamental da vida humana.

Nossa atenção ao que sofre, nossa atração pelas histórias difíceis, nossa preferência pelos testemunhos heróicos (frutos de uma jornada de vitórias sobre grandes obstáculos) parece ser um tipo de correspondência. É como se reconhecêssemos nisso a nossa condição: viver é uma arte difícil, permeada de desencontros e sofrimentos de toda ordem, e as grandes narrativas funcionam como modelos de realização deste que parece ser nosso script comum. Não é a mesma coisa que dizer que nascemos para sofrer; mas nascemos, sim, com a possibilidade de sofrer e no sofrimento encontramos as leis que regem nossa existência.

Estar no mundo é admitir sua contingência - do mundo e da nossa vida individual. Portanto, as biografias mais admiráveis podem ser aquelas que absorvem essa circunstância  limitadora e, de alguma forma, a transcendem. Na hierarquia dos tipos de personagens literários, Northrop Frye destaca os míticos como os mais perfeitos. Se pensarmos em Hércules ou Perseu, por exemplo, perceberemos que sua grandeza advém da proporcionalidade de seus feitos, que são conquistas e realizações sobre as dificuldades e trabalhos que lhe foram impostos. Os personagens mais baixos, seguindo a teoria do crítico canadense, são aqueles chamados irônicos: abaixo de si mesmos, das circunstâncias e dos deveres pessoais. Se sofrem, é inconscientemente, pois são incapazes de projetar e pôr em movimento uma biografia de valor, que recuse a paralisia existencial, admita as dificuldades e opere com os fracassos e a incompletude. É a diferença entre Raskolnikov (de Crime e Castigo) e Leniza (de A Estrela Sobe). A busca do sucesso pela segunda - que deseja ardentemente ser uma estrela do rádio - é uma fina ironia do seu criador: não é isto a vida humana e a coisa que mais se lhe opõe é justamente essa imagem de palco e aplauso.

Nossa condição é dramática e o sofrimento é uma via de acesso às verdades que podemos reconhecer e testemunhar nesta vida. As delícias, os prazeres, o gozo, quando nos acontecem são uma espécie de alento ou consolo: servem para nos fortalecer naquilo que realmente nos torna humanos, dá-nos substância, Por isso, e neste sentido, é mais humano quem mais sofreu. A recusa do sofrimento (e não estou dizendo que devemos desejá-lo com toda força) é uma negação da própria condição, fruto de uma inversão de perspectiva, desde que Marx julgou o paraíso apenas terreal, Nietzsche quis ser um devoto apenas de Dionísio e eu e você confundimos existência com férias.

Digo a vocês: sabe mais de si quem mais sofreu, pois sofrer permite-nos acessar o fundamento da vida, um núcleo composto mais de tensão do que de usufruto. É o que nos faz literalmente tencionar nossas vidas para o que importa, vencendo a inércia característica da leniência domingueira. Talvez por isto Deus tenha nos oferecido modelos de sacrifício que, pelo que acreditamos, mereceram os maiores júbilos no céu - a começar pelo próprio Cristo. As marcas no rosto, as cicatrizes pelo corpo, os dramas vividos, os fracassos, em suma, a escuridão solitária pela qual todos passamos, é o que nos distingue, nos torna mais interessantes, nos forja humanos. Doenças, falta de dinheiro, dificuldades em casa, desemprego, etc: tudo é graça se admitida a perspectiva a que me refiro. Tudo é capítulo da aventura humana que perde para poder ganhar.

22.5.16

Antropologia e sentido da vida

O professor Tiago Amorim fala sobre o sentido de vida na perspectiva antropológica espanhola.

23.4.16

Liberdade, tirania

As análises políticas contemporâneas costumam apresentar a democracia e a tirania (como se tornou costume dizer), como pólos opostos dentro da plêiade de sistemas de governo de países modernos.

A democracia, geralmente pintada com cores vistosas e atraentes, assegura, segundo dizem, o maior grau de liberdade possível a seus cidadãos. Liberdade política, de organização e de trabalho são aspectos frequentemente lembrados da vida democrática. Menos vezes se caracteriza a democracia pela quase ausência de freios morais que nela impera. De fato, o governo democrático é impotente para operar qualquer melhoramento moral de sua sociedade, por ser sustentado por princípios relativistas, e também por recear constantemente desagradar a turba sempre ávida de novas liberdades.

A ditadura, pelo contrário, costuma-se pintar com cores sombrias (negras, quando se trata de ditadura de "direita"). A ausência de partidos políticos - de oposição, é claro, - a obrigação de trabalhar sob controle rígido, o Estado policialesco e, muitas vezes, as restrições à própria liberdade de movimentação são labéus que maculam os regimes ditatoriais. Esses, porém, não se intimidam em impor padrões de comportamento a seus súditos, denominando-os, porém, de atitudes "cívicas".

Essa oposição entre democracia e ditadura (seria mais exato dizer tirania, mas evitamos essa palavra para não sermos mal interpretados), à primeira vista tão ampla e envolvendo aspectos tão diversos, não é senão aparente. Caso contrário não se explicariam as frequentes e abruptas transições da democracia à ditadura, nem o fascínio crescente que a tirania marxista exerce sobre as democracias.

Ao invés de considerar a tirania como a antípoda da democracia, devemos na verdade estimá-la como a prole legítima desse último regime. Com efeito, é justamente o bem que a democracia mais preza, a liberdade, que, buscada excessivamente, acarreta sua dissolução.

Essa afirmação, não obstante pareça insólita, é justamente a tese defendida por Platão no seu célebre diálogo "A República". A verdade dos princípios nele propugnados  é de tal forma universal que consideramos legítimo transpor suas mesmas conclusões para a nossa sociedade.

Platão afirma que o Estado (ele usa a palavra cidade) democrático, embriagado pela sua ânsia de liberdade, passa a erigir governantes sempre mais frouxos, que não tenham coragem ou princípios para conter o relaxamento crescente. Os governantes que hesitam em atender essas tendências são rotulados de inimigos do povo.

Não se aplica essa descrição a nossa sociedade? Será por coincidência que nossos governantes são sempre mais hesitantes? Não explica ela o número crescente de vozes que se levantam contra a censura, mesmo a que protege as bases do Estado?

Platão afirma que na democracia o mesmo espírito anárquico penetra os domicílios privados: "o pai se acostuma a igualar-se com os filhos e a temê-los, e os filhos a igualar-se com os pais e não lhes ter respeito nem temor algum... Jovens e velhos, todos se equiparam; os rapazes rivalizam com seus maiores em palavras e ações; e estes condescendem com eles, mostrando-se cheios de bom humor e jocosidade, para imitá-los e não parecerem casmurros e autoritários". 

É difícil encontrar descrição do mundo atual mais exata do que essa redigida a mais de dois mil anos. Mas Platão não se detém, ele fala ainda da igualdade dos sexos, da confusão entre cidadãos e estrangeiros, e termina com uma frase antológica: "as cadelas valem tanto quanto as suas donas, e os cavalos e os asnos andam às soltas, como importantes personagens, empurrando pelos caminhos a quem não lhes cede o passo; e por toda a parte se vê a mesma pletora de liberdade". Embora Platão tenha escrito em sentido simbólico, não podemos deixar de pensar nos inúmeros institutos de beleza canina espalhados pelas cidades contemporâneas.

A consequência desse estado de coisas é que os cidadãos não aceitam a menor imposição da autoridade e terminam por votar a sua completa abolição. Qualquer semelhança com a atual realidade não é mera coincidência.

Dessa forma o excesso de liberdade conduz à abolição da lei, daí resultando necessariamente a tirania. Pois o povo, excitado pela febre de liberdade e acostumado a encontrar fraqueza em seus governantes, exige que eles despojem os ricos e distribuam-lhes os bens. Não lembra isso nossa tão malfadada reforma agrária, propugnada como uma exigência da "dignidade humana"? O próprio Platão reconhece que o governo procura atender a esses reclamos do povo - "depois de reservar para si a parte do leão" - mas também não pode descontentar totalmente os ricos, de cujo sustento depende.

É nessa altura que surge a figura do "protetor do povo". Um líder suficientemente inescrupuloso para conduzir a massa, fazendo-se passar por seu benfeitor. Platão assim o descreve: "... nos primeiros tempos ele anda cheio de sorrisos, saudando a todos que encontra e negando que seja um tirano; promete muitas coisas em público e em privado, perdoa dívidas, distribui terras entre o povo e  os de sua comitiva". Nossos partidos de esquerda são povoados de protetores em potencial, sempre prontos a distribuir favores (e propaganda) com o bem alheio.

Todavia, o tirano está sempre pronto a ver inimigos tanto internos quanto externos, que não permitem ao povo dispensar seu condutor, seu "fühner". São esses inimigos que permitem-lhe cobrar impostos onerosos. Dessa forma também garante que qualquer descontentamento interno pode ser apontado como uma traição ao Estado. Se alguém ao ouvir essa descrição se lembrou-se da Nicarágua, pense também em Cuba, na Polônia, etc.

Dessa forma o tirano se vê obcecado em perseguir seus inimigos e "segue por esse caminho até não deixar com vida uma só pessoa de valor quer entre amigos, quer entre inimigos".

Como se vê, em nada nos força a comparação. A descrição feita por Platão se coaduna perfeitamente com os fatos que hoje assistimos. Se a tirania representada no mundo moderno pelo comunismo, ainda não se implantou em toda a parte, ela se aproxima a largos passos. Em alguns países a decomposição avançada das instituições permite prevê-la para amanhã. Em outros a sede de liberdades acabará por trazê-la mais tarde.

Mas se isso é verdade, democracia e tirania não devem ser descritas como pólos opostos, mas como etapas de uma única doença, de uma única decomposição. Essa doença é de natureza moral, pois consiste na busca desordenada e exclusiva de um bem - a liberdade - em detrimento de outros bens.

Muito mais do que a propaganda soviética, a grande mola do comunismo é a ausência de valores morais das democracias e, por causa disso a tirania só poderá ser evitada com uma reforma de natureza moral, que deve partir de dentro para fora, isto é, do coração do homem, para as instituições e para toda a sociedade.

É nas profundezas de cada coração e no recôndito das consciências que nasce a verdadeira restauração da ordem política.

"Quando numa cidade são honrados a riqueza e os ricos, a virtude e os virtuosos tornam-se alvo de desdém".

Por Gustavo de Araújo

21.1.16

6.12.15

Sublime comunhão de trapaceiros, vestíbulo do anticristo

A civilização pós-cristã contemporânea sepultou a ideia de virtude, seja no plano individual, seja no coletivo. Após as violentas assertivas de Nietzche, Freud e Marx - e, posteriormente, de seus epígonos filosóficos e ventríloquos universitários ao longo do século XX - , o bom caráter acabou por tornar-se uma espécie de impossibilidade sociológica, cultural. Os parâmetros estabelecidos à luz da obra desses mestres da prestidigitação teorética e, também da de alguns dos seus antepassados, como Hobbes e Maquiavel, passaram a ser sobretudo três: o insaciável império da vontade, o governo tirânico e libidinoso do inconsciente e a luta entre grupos vetorizados pelo critério material. De maneira decisiva e em nível até então inimaginável, a arte perdeu o vínculo com o belo e a política com o bem, dois transcendentais do ser.

Tornamo-nos sociedades de tarados impacientes, pessoas que exigem sem demora o cumprimento estrito de absolutamente todos os seus caprichos, pondo a culpa de qualquer infortúnio pessoal ou desejo insatisfeito nas injustiças sócio-políticas, nas desavenças de classe e no "preconceito", palavrinha mágica hoje capaz de auferir benesses estatais vultosíssimas em favor de quem a souber manipular - sempre a título do pagamento de dívidas atávicas que podem remontar ao paraíso adâmico. A máxima sartreana erigiu-se em norma pétrea: o inferno são os outros, mas numa conformação em que a tolerância à adversidade é zero. Em síntese, não apenas desacreditamos da virtude, mas lhe pusemos gigantescos obstáculos políticos, impedindo que aflore no tecido social, com as cada vez mais honrosas e miraculosas exceções.

Criamos uma cultura patógena, ou seja, fomentadora de enfermidades psíquicas em larga escola, como costuma afirmar o filósofo tomista Martín Echavarría, prolífico autor contemporâneo de importantes estudos na área de psicologia. Por sua vez, o espírito liberal engendrou no Ocidente um cenário no qual a norma é aprovar leis multiplicadoras dos confrontos entre grupos e indivíduos, na prática um fomento legislativo à inimizade, à divisão das sociedades em minorias cada vez mais numerosas que se odeiam com monolítica reciprocidade.

Como não poderia deixar de ser à vista do acima exposto, o homem contemporâneo é tribal, precisa afirmar-se nalgum agressivo grupo identidário excludente de todos os demais, com o luxuoso apoio do Estado. A um só tempo, ele é espiritualmente emasculado, moralmente tíbio e fisicamente violento. Sobretudo o homem filho da geração neta do "é proibido proibir", expressão parida, formulada, concebida na nunca assaz incensada anarquia do Maio de 68. A propósito deste evento de falsas intenções libertárias, dizia Raymond Aron que o seu propósito era, acima de tudo, criar uma máquina de guerra para destruir as universidades como centros de ensino e atacar a ordem social inteira. Um radicalismo itinerante que hoje reencarna no Brasil, na pele dos grupos de "manifestantes" financiados indiretamente pelo governo federal para galvanizar toda a política e evitar o nascimento de qualquer verdadeira oposição.

Ora, retirado do sofrimento humano o seu sentido transcedente, que o cristianismo tão benevolente trouxera ao mundo, não restam senão desespero e agonia, cupidez e desordem, maldade e desonra. Extirpada do horizonte social a noção de culpa, assim como as virtudes teologais - fé, esperança e caridade -, substituídas pela revolucionária tríade fraternidade-igualdade-liberdade, as pessoas tendem a criar mecanismos de autocomiseração e desculpar-se previamente a si próprias, arrolando estapafúrdias justificativas para os mais hediondos atos, sempre tendo à mão algum intelectual, jurista ou parlamentar para lhes dar suporte.

Em verdade, a marcha da insanidade é, na acepção do termo, política: o Estado transformou-se no difusor maior da maldade, na medida em que ele próprio se pretende normatizador do certo e do errado moral, bem ao modo hegeliano. Ele é babá de caprichos e taras potencialmente multiplicáveis ao infinito, garantidor do fundamental direito de jogar todos contra todos e indomável inimigo dos resquícios de cristianismo - principalmente do cristianismo católico tradicional, aquele que defende dogmas bimilenares e a exclusividade salvífica da Igreja.

Na Nova Ordem Mundial, só um arremedo de religião ecumênica poderá ter lugar, e a própria Igreja pós-Vaticano II ajudou a erigir o presente estado de coisas, com gravíssimas omissões e um neomagistério dialogado feito de encomenda para não ferir susceptibilidades. Mas se - como diz Santo Tomás de Aquino no clássico De Malo - um pecado é tanto mais grave quanto maior é o bem a que se opõe, quão enorme culpa têm essas autoridades eclesiásticas prevaricadoras do seu múnus espiritual! Descumpridoras da norma segundo a qual, como dizia Leão XIII, o Estado sem a Igreja é um corpo sem alma. Ou, noutras palavras: a matéria sem um espírito que a vivifique é decomponível de per si.

Se a política é hoje esta sublime comunhão de trapaceiros cujo objetivo é manter-se no poder a qualquer custo, tenhamos em vista que a natureza não dá saltos e que para chegarmos a este padrão de degradação foi preciso transformar a política em algo com princípio e fim em si mesma. Desvinculá-la de quaisquer pilares espirituais. 

Coisa inédita desde a Antiguidade mais remota.

1.11.15

Dificuldades gerais da psicologia contemporânea para compreender a natureza do amor

A psicologia atual, tanto em sua vertente experimental, como em sua vertente clínica e outras, surge no fim do século XIX de uma matriz materialista, pelo qual se designou, com razão, como uma psicologia sem alma. Sem alma foi a psicologia experimental de Wundt, foram as psicologias funcionalistas americanas, a reflexologia e o conducionismo e, também a psicanálise. Desde uma perspectiva influenciada pelo positivismo, e antes pela crítica kantiana da psicologia racional, essas formas de psicologia consideram a alma em geral como um princípio de explicação da mente e da conduta humana arcaica e mítica. O homem não seria outra coisa que matéria organizada que não se distinguiria qualitativamente de outras formas de organização da matéria. A matéria é princípio potencial, não real e determinante, receptora de perfeição, mas imperfeita por natureza. Todas as variedades de materialismo são filosofias da potência e não do ato, e, nessa medida, são incapazes de compreender a perfeição e o bem. Por isso, para a psicologia materialista a perfeição é uma espécie de utopia, quase que diríamos, de anomalia. O normal seria a inércia e a imperfeição.

Este materialismo, que se fundava a psicologia clássica do fim do século XIX e princípio do século XX, era em geral mecanicista, mas sobretudo era um biologismo evolucionista. O ser humano, mera organização da matéria sem dimensão transcendente, teria surgido da mutação casual da matéria. Ao ser esta mutação casual, e não dirigida inteligentemente, seu resultado não seria um bem, porque o bem é algo apetecido, querido. O homem não seria alguém querido, nem muito menos, querido por si mesmo. Para ser querido por si mesmo, deveria ser algo dotado de intimidade, ou seja, alguém dotado da capacidade de voltar sobre si mesmo por reflexão e, por tanto, alguém que pode possuir o bem de modo estável. Se o homem não é um bem, nem capaz de possuir o bem, se não foi querido inteligente e pessoalmente, tampouco é alguém que pode ser querido por si mesmo, ou seja, não é suscetível de amor de amizade.

O ponto de vista biológico, aliás, sustentado por todas essas correntes, concebe o ser humano como um mero ser da natureza, imerso em seu meio ambiente, em intercâmbio com este com a finalidade de adaptar-se. Os organismos biológicos implicam uma pluralidade de componentes em equilíbrio. Quanto esse equilíbrio se rompe, surgem as necessidades que se traduzem na consciência como impulso para a superação do desprazer e para a realização do prazer. Isto leva a relação com o meio a fim de obter o necessário para restaurar o equilíbrio interno e o equilíbrio com o meio. Nesta perspectiva, todo ato mental e toda conduta exterior se explicariam em última instância como movimento para a compensação de uma privação, de uma carência ou debilidade. Ou seja, todo amor é amor de concupiscência. Não há lugar para a ação que brota da perfeição, do bem difusível de si (porque tal bem não existiria), da doação desinteressada. Todo amor seria egoísta, possessivo, voraz, mesquinho. Não pode haver amizade.

Este materialismo biologista e evolucionista, elimina ou reduz as faculdades superiores do homem a meros instrumentos ordenados a adaptação. A inteligência não seria uma faculdade pela qual o ser humano se ordena a verdade como seu bem, senão o homem de todas as ações adaptativas que supõem a resolução de problemas não previstos por instintos. Deste modo, o verdadeiro dá lugar ao útil. O pragmatismo é um pressuposto consciente ou inconsciente em quase todas estas correntes. Também o construtivismo se apoia sobre estes pressupostos, como se vê tão claramente em seu precursor, Jean Piaget. O conhecimento seria a construção de ações que são esquema de transformação da realidade. Para essa concepção, conhecer é transformar a realidade, manipulá-la. No fundo, não há verdadeira cognição. Se não há cognição, não há contemplação do bem. Sem contemplação do bem, não há amizade em seu sentido pleno, senão concupiscência, amizade deleitável e amizade útil. Mas não amizade bela, não esse amor pelo qual se ama a pessoa como tal, como outro eu, como uma alma em dois corpos.

Ainda mais deteriorada que a inteligência são as concepções de vontade, o apetite racional despertado pela cognição da verdade. Sem vontade, não há amor de amizade, só pode haver amor de concupiscência, não só no sentido do amor que é para alguém, mas amor como ato do apetite concupiscível, amor do bem deleitável, e derivadamente do que é meio para obtenção do bem deleitável. Não é, portanto, estranha a atitude geral de desconfiança da psicologia contemporânea para a amizade. É que, neste contexto teórico, as relações humanas não podem ser outra coisa que mutua instrumentalização: os pais usariam seus filhos para prolongar seu narcisismo; namorados se usariam mutuamente para obterem satisfação física ou controle moral sobre os outros; o psicoterapeuta não poderia considerar-se amigo de seu paciente, porque poderia ficar intrelaçado nos conflitos do paciente. Isto é assim porque em todo amor nós estaríamos buscando a nós mesmos, e não iria dirigido ao outro conservando sua própria personalidade e bem.

Não é estranho, por tudo isto, que, falando muito sobre o amor, o desejo, as relações objetais ou interpessoais, as influências familiares e sociais sobre a personalidade, etc., a psicologia contemporânea em geral tem negligenciado quase completamente o tema da amizade ou a relegou ao plano da quimera. Evidentemente, nenhum espaço se dá aqui para a ordem sobrenatural e o amor de caridade.

Por Dr. Martín Federico Echavarría

13.9.15

O império da ignorância

Como é possível que, num país onde cinquenta por cento dos universitários são reconhecidamente analfabetos funcionais, o currículo acadêmico de um professor continue sendo aceito como prova inquestionável de competência?

Vamos falar o português claro: Aquele que não dá o melhor de si para adquirir conhecimento e aprimorar-se intelectualmente não tem nenhum direito de opinar em público sobre o que quer que seja. Nem sua fé religiosa, nem suas virtudes morais, se existem, nem os cargos que por ventura ocupe, nem o prestígio que talvez desfrute em tais ou quais ambientes lhe conferem esse direito.

Discussão pública não é mera troca de opiniões pessoais, nem torneio de autoimagens embelezadas: é iminentemente intercâmbio de altos valores culturais válidos para toda uma comunidade considerada na totalidade da sua herança histórica, e não só num momento e lugar.

O direito de cada um à atenção pública é proporcional ao seu esforço de dialogar com essa herança, de falar em nome  dela e de lhe acrescentar, com as palavras que dirige à audiência, alguma contribuição significativa. O resto, por "bem-intencionado" que pareça, é presunção vaidosa e vigarice.

Todos os males do Brasil provêm da ignorância desses princípios. Políticos, empresários, juízes, generais e clérigos incultos, desprezadores do conhecimento e usurpradores do seu prestígio, são os culpados de tudo o que está acontecendo de mau neste país, e que, se esses charlatães não forem expelidos da vida pública, continuarão aumentando, com ou sem PT, com ou sem "impeachment", com ou sem "intervenção militar", com ou sem Smartmatic, com ou sem Mensalão e Petrolão.

Desprezo pelo conhecimento e amor à fama que dele usurpa mediante o uso de chavões e macaquices são os pecados originais da "classe falante" no Brasil.

Só o homem de cultura pode julgar as coisas na escala da humanidade, da História, da civilização. Os outros seguem apenas a moda do momento, criada ela própria por jornalistas incultos e professores analfabetos, e destinada a desfazer-se em pó à primeira mudança da direção do vento.

A cultura pessoal é a condição primeira e indispensável do julgamento objetivo. A incultura aprisiona as almas na subjetividade do grupo, a forma mais extrema do provincianismo mental.

Vou lhes dar alguns exemplos de desastres nacionais causados diretamente pela incultura dos personagens envolvidos.

Só pessoas prodigiosamente incultas podem ter alguma dificuldade de compreender que uma eleição presidencial com apuração secreta, sem transparência nenhuma, é inválida em si mesma, independentemente de fraudes pontuais terem ocorrido ou não.

O número de jumentos togados e cretinos de cinco estrelas que, mesmo opondo-se ao governo, raciocinam segundo a premissa de que a sra. Dilma Rousseff foi eleita democraticamente em eleições legítimas, premissa que lhes parece tão auto evidente que não precisa sequer ser discutida, basta para mostrar o estado de calamidade política e econômica em que se encontra o país vem precedido de uma calamidade intelectual indescritível, abjeta, inaceitável sob todos os aspectos.

Quando na década de 90 os militares aceitaram e até pediram a criação do "Ministério da Defesa", foi sob a alegação de que nas grandes democracias era assim, de que só republiquetas tinham ministérios militares.

Respondi várias vezes que isso era raciocinar com base no desejo de fazer boa figura, e não no exame sério da situação local, onde a criação desse órgão maldito só serviria para aumentar o poder dos comunistas. Mil vezes o Brasil já pagou caro pela mania de macaquear as bonitezas estrangeiras em vez de fazer o que a situação objetiva exige. Esse caso foi só mais um da longa série.

Mesmo agora, quando a minha previsão se cumpriu da maneira mais patente e ostensiva, ainda não apareceu nenhum militar honrado o bastante para confessar sua incapacidade de relacionar a estrutura administrativa do Estado com a disputa política substantiva. Continuam teimando que a ideia foi boa, apenas, infelizmente, estragada pelo advento dos comunistas ao poder - como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra, como se fosse tudo uma soma fortuita de coincidências, como se demolição do prestígio militar não fosse um item constante e fundamental da política esquerdista do país e como se, já no governo FHC, a criação do Ministério não fosse concebida como um santo remédio, com aparência legalíssima, para quebrar a espinha dos militares.

Um dos traços mais característicos da incultura brasileira, já assinalado por escritores e cientistas políticos desde a fundação da República pelo menos, é a subserviência mecânica a modelos estrangeiros copiados sem nenhum critério.

Numa sociedade culturalmente atrofiada, a coisa mais inevitável é que todas as correntes de opinião que aparecem na discussão pública sejam apenas cópias ou reflexos de modelos impostos, desde o exterior, por lobbies e grupos de pressão que têm seus próprios objetivos globais e não estão nenhum pouco interessados no bem-estar do nosso povo.

Cada "formador de opinião" é aí um boneco de ventríloquo, repetidor de slogans e chavões que não traduzem em nada os problemas reais do país e que, no fim das contas, só servem para aumentar prodigiosamente a confusão mental reinante.

Como é possível que, num país onde cinquenta por cento dos universitários são reconhecidamente analfabetos funcionais e os alunos dos cursos secundários tiram sistematicamente os últimos lugares nos testes internacionais, o currículo acadêmico de um professor continue sendo aceito como prova inquestionável de competência?

Não deveria ser justamente o oposto? Não deveria ser um indício quase infalível de que, ressalvadas umas poucas exceções, o portador dessa folha de realizações é muito provavelmente, por média estatística, apenas um incompetente protegido por interesses corporativos? Terá sido revogado o "pelos frutos os conhecereis?". A interproteção mafiosa de carreiristas semianalfabetos unidos por ambições grupais e partidárias tornou-se critério de qualificação intelectual? 

Não é mesmo um sinal, já não digo de mera incultura, mas de positiva debilidade mental, que os mesmos apologistas do establishment universitário fossem os primeiros a apontar como mérito imarcessível do candidato Luís Ignácio Lula da Silva, em duas eleições, a sua total carência de quaisquer estudos formais ou informais? Não chegava a prodigiosa incultura do personagem a ser louvada como sinal de alguma sabedoria infusa? Todo sujeito que, à exigência de conhecimento, opõe o louvor evangélico aos "simples", é um charlatão. Jesus prometeu aos simples um lugar no paraíso, não um palanque ou uma cátedra na Terra.

Por Olavo de Carvalho

4.7.15

O invencível exército dos levianos

Só pode ser alegre quem sabe ser triste. Quem consegue  viver os momentos de pesar, inescapáveis neste mundo repleto de dores e perdas, sem fingimentos de nenhuma espécie, sem entorpecer a consciência perante as questões morais decisivas. Em síntese, a genuína alegria é atributo de quem costuma avaliar com critérios objetivos o próprio agir. Nos antípodas desta situação equilibrada estão as pessoas que carregam no coração uma falsa leveza, a qual tem nome próprio e efeitos funestos: leviandade.

O leviano é alguém que inoculou na alma o hábito da dissipação mental. Geralmente ri muito e por motivos tolos, fala demasiado, é assertivo com relação a futilidades e crê em formulazinhas  que o induzem a buscar a felicidade perfeita nesta vida. Para tanto, necessita deformar o conceito de felicidade e colocar no lugar dele placebos de auto-ajuda, de fácil apelo para o seu caráter camaleônico. Como saliente o filósofo Dietrich von Hildebrand num livro sobre as virtudes éticas fundamentais, o leviano contenta-se com decisões baseadas numa impressão fortuita, para não dizer irresponsável, do bem e do mal, do belo e do feio, daí o fato de poder ser ocasionalmente amável, generoso e solícito, mas sempre sem verdadeira nobreza.

A falta de silêncio interior faz do leviano uma pessoa sem princípios sólidos, os quais dependem de valores perenes fundamentados na realidade. Ocorre que uma torrente de sensações voluptuosas - em permanente confronto umas com as outras - acossa o espírito das criaturas caídas neste deplorável estado, transformando-as em joguete das debilidades que vão tomando conta do núcleo do seu ser, de maneira paulatina e progressiva. Este perpétuo sacolejar interior mata a possibilidade de firmeza de caráter e debilita a potência volitiva, razão pela qual o querer do leviano é inconstante. Uma mesma coisa pode aparecer-lhe ora boa, ora má, sem justificativas plausíveis para a mudança de avaliação, tudo depende de humores circunstanciais.

Não é muito difícil de perceber que o leviano é alguém vocacionado a deslealdade, mesmo sem o saber. Trata-se de uma espécie de profissional da opinião irrefletida - típica de indivíduos cujas escolhas decisivas oscilam conforme momentâneas conveniências. Não que o leviano seja incapaz de amizade, mas na prática é inapto para perceber o que realmente nobilita uma relação entre amigos. Ele vive na superfície das próprias satisfações ou insatisfações cotidianas, e, na embriaguez das selvagens emoções às quais sucumbe, não mantém laços firmes com as demais pessoas. O leviano é, pois, o visceral amigo do próprio umbigo, e este seu resiliente egoísmo não provém do acaso, mas da incapacidade de renúncia, nota distintiva do amor. Ora, só renuncia quem possui, e o leviano jamais entra na posse efetiva dos bens imateriais: a beleza, a verdade, a unidade e a bondade são ideias voláteis, etéreas, na cabeça de quem vai sobrevivendo nesta falsa leveza de espírito. 

Nas palvras de Hildebrand, no turbilhão de sua essência o homem leviano não consegue estabilidade nem mesmo nas coisas que leva a sério. É como uma peneira humana que deixa vazar o essencial, o sumo, o mais importante. Não sendo, pois, fiel às próprias impressões, porque estas mudam duma hora para outra, ao leviano está vedada a fidelidade às outras pessoas - não propriamente por malícia, e sim por inépcia. A sua desgovernada intensidade afetiva é uma erupção vulcânica que destrói a hierarquia dos valores e o faz perder a crença em si mesmo, embora camufle esta insegurança existencial com a assertividade frívola acima mencionada.

O leviano comete suicídio psíquico sem ter a mais ínfima noção do próprio estado. A sua ânsia de gozar o momento presente, maligno carpe diem do qual não consegue desagrilhoar-se, é signo perceptível da incapacidade de ir às camadas mais profundas da ação moral. Aqui, não sejamos eufemísticos: o leviano não ama; ele se entretém. Portanto, a cultura do entretenimento - imperante no mundo globalizado onde tudo tende a uma forçosa homogeneização a partir do que é baixo, vulgar, grotesco - é o habitat natural em que sua irreflexão deita raízes. O coração leviano nunca será de ninguém, como diz uma canção popular.

Quando os chamados "bens culturais", expressão equívoca a não mais poder, induzem à leviandade em larga escala, acontece o que vemos hoje: cresce o número de gente incapaz de manter relações profundas, sinceras, amigas. A alegria tem uma morte social, mas não para dar lugar à tristeza, como seria de se esperar, e sim a dissipações de todos os tipos. Em tal configuração, é loucura dar sem exigir de imediato algo em troca; a propósito, uma sociedade de levianos é hospício a céu aberto onde zumbis se arrastam pela vida apáticos diante do bem e do mal.

Esta cínica alegria dos levianos faz com que seu contato com o mundo exterior seja representativo numa comunicabilidade ilusória, na qual a troca de bens reais, objetivos, simplesmente não existe. Se tal patologia, por desgraça, começa a ganhar terreno, a anestesia coletiva apodera-se do conjunto da sociedade de maneira insidiosa e faz destas almas ocas um exército imbatível, composto de rostos sem feições indentificáveis. 

Qualquer analogia da realidade descrita nos parágrafos acima com o Brasil contemporâneo não será leviandade. 

31.5.15

A civilização do prazer

Qualquer pessoa medianamente dotada e ainda não dopada pelo imperativo de um otimismo que é julgado hoje virtude máxima, e máxima lucidez, qualquer pessoa, em suma, que ainda não esteja possessa pelo sistema, já percebeu que vive dentro de uma decomposição civilizacional cuja característica principal é a de um furioso hedonismo. Todos querem sentir, o minuto que passa, a golfada de ar que respira, a curva que faz a sessenta ou oitenta quilômetros numa rua movimentada. A fisionomia da juventude em tal clima é curiosamente apática, em contradição com o frenesi das reações, e quase se pode garantir que nunca houve em toda a história do mundo uma humanidade tão destituída de gosto e de prazer. Este paradoxo é aliás a bem conhecida contradição moral do prazer: o primeiro de seus malogros é a perda do prazer. Seria, porém, um engano tirar daí uma conclusão tranquilizadora firmada na suposição de que tal malogro corrigirá o extraviado. Ao contrário, exaspera-o.

De onde vem esse extravio moral. Em cada indivíduo a moléstia procede de pequenas e primárias opções subversivas em que, por uma antiga dolência, essa alma volta sua preferência para as coisas exteriores e inferiores; e, deixando-se dominar, torna-se depressa escravo delas. A conquista das coisas inferiores nos afaga ao mesmo tempo o orgulho e a concupiscência, ao contrário do alcance das coisas do alto que nos aprimoram a humanidade e o gosto da sabedoria. O praticante da moral do prazer se torna grosseiro, embotado, às vezes enganosamente aprimorado na conquista de tais bens e, inevitavelmente, como já vimos, se torna exigente de doses maiores, de prazeres mais violentos.

Dias atrás dizia-me alguém com bem fundado estupor: "Quando a moda do sexo passar, e os impotentes de amor descobrirem a enjoada monotonia do sexo sem amor, sem grande amor, passarão a matar. A matar em grupos. Comunitariamente. Haverá cursilhos para ensinar a matar sem ódio, como hoje se ensina o sexo sem amor."

Como terá começado o fenômeno coletivo, civilizacional, que hoje tornou o juízo final assunto de café-em-pé? Creio que já abordei este assunto aqui e ali dúzias de vezes. É uma de minhas obsessões em resposta ao obsessivo rumo do mundo. Pode-se dizer que a história sofreu esta trágica deflexão no século em que os homens afirmaram um novo humanismo afrontosamente autônomo, como se fossem deuses, e afrontosamente afirmou uma nova religião de seu invento, onde Deus entrará somente como objeto indireto e remoto.

Neste tempo que apenas trouxe a eclosão de uma longa e misteriosa carga de ressentimentos acumulados, o orgulho do homem foi espicaçado pelo dilatado domínio das coisas exteriores e inferiores trazido pelas ciências. Muita gente até hoje não aprendeu que a astronomia  é um conhecimento inferior à sabedoria: seu objeto, pelo fato de ser sóis e galáxias a dançarem numa distância de trinta milhões de anos-luz, ou mais, nem por isso é ontologicamente superior, à entomologia, que estuda formigas, cigarras e demais insetos prodigiosamente dotados de vida. Certamente espantarei alguém, ou confirmarei em alguém a hipótese já alimentada de minha insensatez, se disser que o cientificismo pós-renascentista foi um dos primeiros afluentes desta subversão torrencial cuja pororoca já se ouvem os rugidos. A especulação sobre as coisas inferiores, mas facilmente saborosa que a especulação das coisas do alto, que pedem virtudes e dons, trouxe consigo o domínio efetivo, sobre as mesmas coisas materiais. A austera ciência brindou-nos com a técnica. A técnica presenteou-nos com o delírio das sensações fortes, matar 200.000 habitantes de Hiroxima num segundo, ou ir à lua como programa de televisão.

Eu já escrevi que a técnica é uma das glórias do homem, e que o domínio dos elementos é um direito de seus títulos. Mas também já escrevi e torno a escrever que certa catástrofe da história, como a querer repetir coletivamente o pecado original, nos trouxe a subversão cujos efeitos hoje nos afligem. Não a todos; evidentemente, se a aflição consciente fosse geral, esse temor assim difundido já seria o começo de uma sabedoria convalescente. Infelizmente, estamos muito longe de tal difusão. Entre os homens simples, ainda não deformados pela radioatividade da explosão nuclear do eu humano, na renascença e na reforma, encontram-se muitos que já são sensíveis ao temor e tremor que andam nas almas sensíveis. 

Mas a maior aberração de nosso tempo não está nas exposições de pornografia, não está na busca desenfreada do prazer sob todas as formas, não está no alastramento do ateísmo que ganhou título de mentalidade oficial em mais da metade do mundo. Não, a maior aberração de nosso tempo está no entusiasmo com que os homens de Igreja aplaudem o dito mundo moderno e ainda censuram à Igreja a falta de tato de não ser atraente para os moços que correm atrás do prazer. Li essa queixa em Le Monde, que, com isto, exaltava o queixoso: o cardeal Alfrink. Eis as palavras aladas do cardeal holandês: "Como explicar que a Igreja se mostre tão pouco atraente para nos homens de nossa época? Os moços que andam à procura de Deus raramente se dirigem à Igreja. Por quê? Que fazer? Não deveríamos nos indagar se não fomos nós que obscurecemos a mensagem envagélica?" 

Respondo ao cardeal holandês e a todos os outros que dizem coisa parecida, com o atrevimento de atribuir à Igreja, à Tradição, aos Santos, à Nossa Senhora, ao Sangue de Cristo, a fisionomia que os homens de nossa época acham pouco atraente. E respondo dizendo: a Igreja parece ter-se apagado como a estrela dos Magos, e em lugar de sua santa visibilidade vê-se um Sínodo, e dentro dele veem-se e ouvem-se os senhores cardeais e arcebispos que se inculcam como Igreja, e que publicam, difundem, com grande aparato, tamanho e tão repulsivo amontoado de asneiras. Acrescento ainda uma resposta pessoal à pergunta: o programa mínimo que o pobre homem de nosso tempo ainda espera é a lealdade de dizer que a Igreja não é isto que fala pela boca dos Alfrinks, dos Arns, e outros duzentos. Como ninguém diz, e estou velho demais para fazer tais cerimônias, digo-o eu: eles mesmos dizem aos berros que já não são católicos e se envergonham de um dia terem pertencido a uma Igreja que não acompanha as orgias dos moços e dos velhos; eles querem agradar aos homens, ainda que isto os leve ao desprezo de Deus.

Por Gustavo Corção
 renata massa